Existe o mal que nós somos e aquele mal que nós reproduzimos.
Ainda que cada um de nós tenha nascido em uma família específica, com seus valores, vícios e preconceitos, todos nós somos também filhos de nosso tempo, e isso tem incidências importantes em quem nos tornamos.
Nascemos e vivemos em uma sociedade estruturalmente machista, racista e heteronormativa. Dizer que nossos tempos são estruturados desta forma significa afirmar que todos nós somos herdeiros de toda uma história humana que acabou por organizar um mundo em que o privilégio de uns implica a marginalização e segregação de outros. Em outros termos, se a sociedade em que vivemos é machista, racista e heteronormativa, isso significa que todos nós também somos tudo isso, ainda que cada um à sua maneira e em graus diferentes.
Nós não nascemos uma tábula rasa: já antes do nascimento nós somos antecipados, somos desejados, enfim, já temos uma história que nos antecede e da qual nós vamos nos apropriar ao longo dos anos. A questão é que esta pré-história, por assim chamar, é também ela construída (a palavra aqui é importante: construída) tendo como referência certos valores organizadores da cultura. Desejar que um filho seja bem-sucedido na vida, por exemplo, muita vezes significa esperar que ele vá dar conta das demandas da cultura e seja reconhecido pelos seus pares – e isso, em geral, implica uma condição financeira favorável. Até aí, tudo bem: é necessário que nossos pais queiram para nós algo melhor do que eles próprios tiveram. O problema é que este destino antecipado também reproduz lógicas segregatórias que, por sua normatização, acabam se tornando invisíveis. Se falamos em processo de descontrução é justamente porque se faz necessário um questionamento dos alicerces em que nos constituímos, de modo a evitarmos a sua reprodução.
Responsabilidade histórica
Esta cadeia de pais desejantes e filhos desejados se extende até o mais remoto passado, o que significa dizer que nós somos responsáveis, sim, pela história que nos antecedeu e, por isso, estamos implicados nas práticas de violência (racial, de gênero, de classe) que ocorreram mesmo antes de termos nascido.
No fim das contas, nós somos filhos legítimos também do mal que nossos antepassados fizeram. Esta é uma verdade difícil de engolir, ainda que inegável.
Os discursos contemporâneos que colocam o indivíduo, e não o social, sob o holofote acabam por reforçar uma certa forma de vida que vê a si mesmo como o começo de todas as coisas, como se o indivíduo pudesse não fazer parte do mal que ele é, ou seja, daquele mal que todos carregamos conosco e que organiza uma forma de vermos o mundo. Supor que somos indivíduos self made é também supor que o passado em nada nos toca, que somos agentes plenos de nossa história. Não, não somos.
Ignorar o passado que nos constitui como sociedade é uma forma de não se responsabilizar pela violência segregatória dos discursos dominantes; em última instância, é ser um reprodutor sem crítica de uma lógica machista, racista e heteronormativa.
A glorificação da maldade
E o que acontece quando este discurso não apenas está encravado em nossa subjetividade, mas também é celebrado pública e despudoradamente? Em outros termos, o que acontece quando esta maldade que nos constitui não resta apenas como um precipitado histórico, mas é também glorificada e normalizada, quando sua reprodução é incentivada?
Tivemos a resposta a esta pergunta em duas situações brutais acontecidas na semana passada.
No domingo, ficamos sabendo que um “ativista petista” (como a mídia tem chamado), mas cujo nome é Marcelo Aloizio de Arruda, foi morto por um bolsonarista em sua festa de aniversário, um evento privado. Ora, como é próprio aos membros de uma seita, o assassino seguiu à risca a ordem do seu líder: “Metralhar a petralhada”. Não há como não estabelecer uma relação causal entre esta frase de Bolsonaro, a flexibilização do porte de armas, a incitação à violência e o assassinato de Marcelo.
Claro que muitos de nós já pensamos em matar nosso vizinho que deixa o som alto enquanto tentamos dormir. Inclusive imaginamos, em nosso devaneios sádicos, as diferentes formas de fazer outro vizinho enfiar a furadeira na própria testa, e não na parede no domingo à tarde. A maldade nos é familiar e íntima, e dialoga com o nosso bom senso o tempo todo. Em uma sociedade civilizada, nós substituímos o tiro e a violência pela reclamação junto ao síndico ou por uma conversa por interfone. Uma cultura democrática supõe que nós tenhamos que nos responsabilizar pela maldade que carregamos e transformá-la em um ato civilizado que jogue a favor da manutenção do laço social.
Entretanto, em um clima social em que a barbárie é a tônica, aqueles que já carregavam em si essa maldade de forma latente encontram terreno fértil para brutalmente exporem as suas entranhas em via pública, tendo seus movimentos orquestrados por um maestro sanguinário.
Outra situação tomou conta do noticiários e das redes sociais foi o estupro protagonizado por um anestesista em sua paciente em pleno trabalho de parto, em um hospital em São João do Meriti, no Rio de Janeiro. O crime só veio a público por conta da coragem das enfermeiras e técnicas de enfermagem que filmaram o delito e expuseram o tal médico.
Ora, sabemos bem que o discurso médico é um dos filhos mais ilustres da lógica machista, racista e heteronormativa. Por muitas vezes, é um reprodutor da maldade, como nas práticas higienistas e na violência obstétrica cotidiana, por exemplo. Sob o pretexto do cuidado da saúde do outro, não são poucos os representantes desta classe que, infelizmente, fazem uso do jaleco para perpetrar violências de cunho tanto físico quanto psicológico. Por sorte, há médicos mais em paz com a sua posição de poder, profissionais em que podemos confiar e que inclusive se posicionam criticamente com relação à formação que tiveram em seus cursos na faculdade.
Em um governo que atribui o tempo todo à mulher o lugar de objeto – lembremos a frase de Bolsonaro a Maria do Rosário: “Não estupro porque você não merece” – não é nada estranho que um médico se sinta autorizado a cometer um ato bárbaro como aquele do anestesista.
Como país, elegemos um genocida racista e misógino que elogia e glorifica a violência e a barbárie, que enaltece a colocação em ato do mal que a todos nos habita. Alguns, adeptos desta religião da literalidade (metralhar, estuprar), acenam para o seu líder com seus bisturis e armas cobertos de sangue e ódio, aguardando a aprovação de uma figura que faz da morte o seu dízimo.