Você já ouviu falar em sopapo? Não me refiro ao tapa ou soco bem dado, que ultimamente a gente anda sentindo vontade de desferir por aí… (mas sou da paz, logo, me controlo!) O sopapo de que falo é um tipo de tambor bem peculiar, grande, pesado, com um timbre forte. É um instrumento de percussão típico da cultura afro-gaúcha. É, alguns podem se surpreender, mas este estado que tanto alardeia sua ascendência europeia tem muito de influência africana. Em sua terceira edição, o festival CABOBU acontece em Pelotas, de 21 a 23 de abril, reverenciando o sopapo, esse tambor que circula entre o divino e o profano e perpetua sua influência na música e na religiosidade de matriz africana no Rio Grande do Sul.
Originalmente feito com troncos de árvores e couro de cavalo pelos negros escravizados que trabalhavam nas charqueadas da região de Pelotas, lá pelo século XIX, o sopapo é mais do que um instrumento: é um símbolo da presença negra na cultura gaúcha. O primeiro registro do sopapo é de 1826, ou seja, ainda antes da dita abolição de 1888.
Sabe-se que outros tambores bem semelhantes foram encontrados na Argentina e no Uruguai; lá, eram conhecidos como sopipa e tinham um timbre mais grave. Por essa conexão, o instrumento também é visto como símbolo da ligação com os países vizinhos e contribui para demarcar a recomposição territorial da cultura platina.
O homem do sopapo
É quase impossível falar de sopapo sem que venha à memória a figura do músico, compositor e percussionista Giba Giba. Figura imponente, sempre usando trajes com referências africanas e o sopapo em suas apresentações.
Nascido em Pelotas em 1940, Gilberto Amaro do Nascimento tinha apenas 12 anos quando recebeu um sinal, uma missão, transmitida pelo babalorixá pelotense conhecido como Boto. Diante de um tambor de cerca de um metro de altura, Boto colocou a mão do menino sobre o instrumento e vaticinou que Giba Giba seria o homem do sopapo. Nessa época, início dos anos 1950, o Carnaval de Pelotas era reconhecido em todo o estado por sua pujança e qualidade. Era justamente o sopapo que trazia uma batida diferente que diferenciava o samba gaúcho.
Décadas depois, em 1999, em visita a Pelotas, Giba Giba percebeu que o sopapo havia perdido espaço. Em seu lugar, usava-se o surdo, outro tipo de tambor, mais leve e fácil de carregar, bastante usado nas escolas de samba do Rio de Janeiro.
Graças à movimentação de Giba Giba e outros artistas, o instrumento foi recuperado e reintegrado ao cenário musical. Bataclã FC e Serrote Preto, Mestre Baptista, Dona Maria e José Batista foram alguns nomes que lutaram pela revitalização do instrumento.
Giba Giba idealizou o projeto Cabobu, cujo nome é uma homenagem aos mestres sopapeiros pelotenses Cacaio, Boto e Bucha. As duas primeiras edições aconteceram em 2000 e 2001, reunindo centenas de pessoas em um festival ao ar livre em Pelotas. Além de grupos artísticos de canto e dança africanos, o festival recebeu alguns dos maiores percussionistas do Brasil, como Naná Vasconcelos, Djalma Corrêa e Chico César. Giba Giba morreu em 2014, sem conseguir ver uma reedição do festival.
Em sua terceira edição, agora entre 21 e 23 de abrill de 2023, o evento faz uma projeção das temáticas culturais que permeiam a vida e o cotidiano do negro brasileiro. Entre elas estão o racismo, a cidadania, as ações afirmativas e as culturas negras, nas quais, diz Edu do Nascimento, “tocar tambor é um ato de sobrevivência, é o nosso emblema social de ascensão natural, a consciência humana de atitude”.
A programação tem coordenação do músico Edu do Nascimento e do projetista e luthier José Baptista. Ambos são filhos de grandes nomes da valorização e disseminação do conhecimento do sopapo: Edu, filho do Giba Giba, e José, filho de Mestre Baptista, responsável pela construção de cerca de 40 sopapos que, à época, foram distribuídos em todo o Rio Grande do Sul.
Hoje podemos apreciar a importância do sopapo na cena musical porto-alegrense através do trabalho de artistas e pesquisadores como Nina Fola, Edu Nascimento, Lucas Kinoshita, Richard Serraria e o grupo Alabê Ôni.
Quem quiser aprofundar e aprender um pouco mais sobre a história do sopapo, indico o documentário O Grande Tambor (veja nesse link), patrocinado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional.
Revisão: Rodrigo Bittencourt