Rayssa é uma menina gaúcha de Porto Alegre, estudante de escola pública, e, num exercício de redação, trouxe uma reflexão sobre seu comportamento de defesa. Não é uma fala de choro, não é resultado de alguma violência pontual. No alto de seus 17 anos, Rayssa faz uma pensata encantadora sobre o que é ser mulher negra.
O textinho singelo dessa garota encontrou eco em meus pensamentos imperfeitos sempre cambaleantes diante das emoções, as vastas emoções que me assolam.
Ainda causa espanto em muitas pessoas quando se fala sobre a solidão da mulher negra. Quanto mais levantamos os temas sobre racismo, sobre a necessidade de termos uma sociedade consciente de seus erros e preconceitos, mais revoltante é perceber a tentativa de negação ou minimização de nossas dores.
Nossa sociedade se construiu sobre estereótipos e preconceitos. Mulher negra é sinônimo de quê? Beleza exótica, sensualidade à flor da pele, “boa pra trepar, mas não para casar” … E assim vamos colecionando rejeições ao longo de nossas trajetórias sem ser a rainha da escola, sem estar no bolo vivo ou ser dama de honra, não fazer parzinho nas festinhas do colégio. Ah, isso já mudou, né, Rejane? Com certeza, muitos desses constrangimentos foram reduzidos, embora ainda sejam práticas bem comuns. E traumáticas.
Infelizmente, a regra geral ainda é a hipersexualização de nossos corpos e o desprezo por nossos sentimentos. Mulheres negras e seus corpos esculturais e rebolantes são exaltados no Carnaval e na música dita popular na mesma proporção em que se perpetua o descarte na hora de assumir um “relacionamento sério”, inclusive por homens negros.
Agregue-se aí os índices de feminicídio, violência sexual, obstétrica e doméstica, heranças escravocratas que fundamentam tudo isso, e tá feito o estrago psicossocial.
Ser mulher negra num país racista é uma prova cruel. Ser uma menina negra, atravessar a adolescência, driblar a onda “natural” de bullying, sobreviver com a autoestima elevada exige acompanhamento profissional, que poucas, muito poucas têm acesso. Ver a Maju Coutinho apresentando o Fantástico e cada vez mais “caras pretas” na mídia ainda está muito longe de espelhar a maioria que somos neste país, ainda está muito longe de ser “normal”.
E eis que de repente, sim, não mais que de repente, me aparece um texto de uma menina de 17 anos, refletindo sobre as causas de sua agressividade latente.
“Sou apenas mais uma neguinha que veio da periferia. Eu gosto muito de falar sobre como é ser uma mulher preta que mora onde o estereótipo rola solto, gosto de falar sobre isso porque outras pessoas podem se identificar lendo e ver que não tem porque ter vergonha de ser quem é. Até eu me reconhecer e aceitar as minhas origens foi muito difícil, eu diria que foi uma fase bem complicado da minha vida, mas tenho mulheres incríveis do meu lado me mostrando todos os dias que ser mulher preta não é sinônimo de tristeza e sim de muita alegria.”
Só essa apresentação, que solicitei a Rayssa depois de ler seu texto, seria suficiente para uma bela discussão, pensata, dedo-na-ferida. Mas Rayssa é um ser especial. Divido com vocês o textinho produzido em sala de aula e me calo. Volto para meu canto a fim de organizar meus pensamentos, lustrar minha armadura e burilar as poucas palavras que me restam. Que bom que existem Rayssas neste mundo.
Vestígios da geração
Acredito que sou composta por uma armadura que foi construída muito antes de mim e foi passada de geração em geração. Talvez, até bem antes da minha avó, por isso é tão difícil tirá-la. Armadura essa, que é feita por palavras, mas não qualquer palavra, é aquela que sai automaticamente.
A armadura que me refiro reveste as palavras, trata-se da grosseria. É triste ver que há uma “necessidade” de botar essa armadura, talvez para se defender da vida. Talvez para seguir os estereótipos que uma mulher preta carrega, de ser barraqueira, fria entre tantos outros.
Vejo, pois, vestígios em mim, nas minhas falas e no meu jeito de agir. Às vezes, uso-a reagindo rápido demais a situações sendo ignorante, sem perceber. Acho que fui vendo ao longo do tempo que essa armadura só nos prejudica e que não é algo “normal”, como acreditava. Há um trecho de uma música de Bazzi – Alone que diz “talvez eu esteja frio congelado por causa do meu passado recente”. Faz com que pense nos vestígios das gerações antigas, e como me afetam.
Quando percebi que essa armadura não é saudável, comecei a falar sobre ela com a minha mãe. Conversamos e aos poucos estamos tentando mudar esses hábitos. Com isso, percebi que, muitas vezes, afastei pessoas por conta desse traço muito complexo, mas que tenho poder de mudar.
Rayssa Carvalho da Silva tem 17 anos, estuda no C.E. Cel Afonso Emílio Massot desde o primeiro ano do fundamental e atualmente está no 2⁰ ano do ensino médio.