Para além dos questionamentos – e são muitos! –, os dias pedem uma reflexão profunda sobre o momento que vivemos. As cartas estão dadas. O tabuleiro está na mesa. Mas o jogo se dá em campo minado. A política elitista, soberba e cheia de retórica permanece no ar e é preciso paciência em nome da ética e do coletivo. Algumas propostas ainda saem de gabinetes fechados e respondem a interesses pessoais e corporativos, mas a democracia fala mais alto. E, em nome do país que recuperamos, é hora de valorizar a educação, a saúde, a segurança, as conquistas sociais, o diálogo e o respeito pelo outro. Não podemos deixar esmorecer a nossa esperança diante de acontecimentos que abalam nossas certezas.
– Por um lado, as respostas do meio ambiente são contundentes. Aqui vivemos a tragédia provocada pelas chuvas, que destruiu cidades inteiras, provocou quase 50 mortes, deixou muitas pessoas desabrigadas, devastou famílias inteiras, que perderam tudo, e ainda há desaparecidos. As chuvas se espalharam, rios e arroios extrapolaram suas margens e precisaremos de força, persistência e muito trabalho para recuperar o que foi perdido e ajudar as vítimas a ter um pouco de tranquilidade. O lixo que está sendo retirado é cheio de significados que se perdem no meio do barro.
– Por outro lado, a constatação de que o aparato policial não garante a segurança de parte da população, especialmente nas favelas, que continuam ameaçadas e amedrontadas. A violência explode! Os tiros partem de todos os cantos e matam sem piedade, dilacerando famílias, como aconteceu no Rio de Janeiro. Lá uma ação da Polícia Rodoviária Federal matou uma menina de três anos, baleada na cabeça e nas costas. Heloísa dos Santos Silva estava no carro com os pais, a tia e a irmã quando os tiros atingiram o veículo. As armas que os policiais carregam não são para sair atirando aleatoriamente, por mais suspeitas que eles tenham. O desrespeito e a impunidade, que ainda reinam implacáveis nestes espaços, causam muita dor.
Coragem, persistência e esperança, sim!
Mas nesse caldeirão inquietante, a solidariedade, a emoção, os abraços, o carinho e os recados sensíveis chegam de toda parte para nos mostrar que o jogo não está perdido, entre um flash e outro do sucateamento cruel. Há que se ter coragem. E esperança, sim! Mesmo que o panorama visto nesta passagem dos meses de agosto e setembro seja de sofrimento, do micro ao macro.
É estimulante neste momento pensar que a educação libertária, a arte e os artistas que fazem pensar, divertem, acolhem e espalham alegria, voltaram para as nossas vidas. E ver jovens de universidades vestidos de palhaços fazendo brincadeiras com as crianças em um ginásio que acolhia pessoas que perderam me emocionou muito. A arte já não é mais uma ameaça como foi nos últimos quatro anos de um Brasil ameaçado.
A sociedade, que esteve tão doente, recupera seus valores e o entusiasmo verdadeiro, conectada com o impulso mais nobre do ser humano, que é ver o outro e estender a mão.
A democracia, que esteve tão fragilizada, recupera sua força e assim seguiremos solidários, vigilantes, responsáveis e cheios de afeto.
Vamos cuidar do nosso direito à vida com dignidade e respeito, do nosso bem estar, da alegria, do lazer e da cultura que nos dá raízes e identidade. Vamos olhar uns para os outro e dialogar, compartilhar, dividir, trocar.
O poeta Carlos Drummond de Andrade disse certa vez: “É hora de recomeçar tudo de novo, sem ilusão e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no meio do terremoto”.
Estamos juntos. E não vamos desistir, nem nos perder em meio aos temporais, terremotos, tsunamis que tentam frear nossas vidas e nossos sonhos, aqui, no Marrocos, na Líbia, em diversas regiões do planeta. Vamos ouvir as vozes da natureza e dos especialistas e acelerar os cuidados com o meio ambiente. Vamos nos preparar porque chuvas fortes, enchentes, ventos, queiramos ou não, previsíveis ou não, vão acontecer cada vez mais. Antes tarde do que mais tarde, é necessário ter estruturas disponíveis para enfrentar estes fenômenos – fazer resgates, providenciar locais para acolher as pessoas e ouvi-las com cuidado e atenção, especialmente as crianças, oferecendo condições para que possam reconstruir suas vidas e seguir firmes.
Como escreveu o jornalista Nei Duclós, em Outubro*, livro de poesia lançado em 1975, que ganhou uma edição comemorativa de 40 anos: “Apesar de tudo sou teimoso e vivo / Sou teimoso e insisto”.
*Para a escritora Cíntia Moscovich, “Outubro é daqueles livros de resistência, de força e de lirismo, tudo a um só tempo, que traz o ideário de uma juventude que havia se formado na vigência da contracultura, debaixo de um brutal cerceamento de ideias e embalada pela tentativa de formação de uma identidade latino-americana. Volume antológico, desses clássicos já ao nascer, Outubro traz versos que soam viçosos ainda hoje – Embora não acredites/ estou tão habitado/ que pareço um mar“.
Foto da Capa: Jakayla Toney / Pexels