Eu tenho lido muitas publicações, nas redes sociais, sobre o julgamento ocorrido em 10 de fevereiro passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) teria determinado o ensino da “linguagem neutra” nas escolas. Isso não é verdade! O STF ao examinar o caso não entrou no conteúdo de uma lei do Estado de Rondônia que determinava que “o aprendizado da língua portuguesa fosse de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino estabelecidas com base nas orientações nacionais de Educação, pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VolP) e da gramática elaborada nos termos da reforma ortográfica ratificada pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” e que por isso vedava “a denominada “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, assim como em editais de concursos públicos”.
A análise do STF sobre a questão debatida em razão de Ação Direta de Inconstitucionalidade 7019 (ADI) movida pela A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), contra a Lei 5.123/2021, do Estado de Rondônia, ficou reservada ao exame da competência legislativa dos Estados para legislarem sobre matéria cuja competência, no caso concreto, pertence à União.
A competência legislativa no Brasil
A competência para legislar, ou seja, a capacidade de editar leis ou ato normativos, está estabelecida na Constituição Federal (CF), que distribui a competência levando-se em conta a atribuição de cada ente federativo de forma isolada, e também de forma conjunta ou concorrente sobre a mesma matéria.
Em se tratando de competência para legislar concorrentemente, a CF estabelece que no “âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
Dentre os diversos assuntos enumerados pela CF como de competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios, estão a educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Brasil (LDB)
A primeira LDB do Brasil foi promulgada em 1961, a LDB em vigor é do ano de 1996, e vem sendo constantemente atualizada por diversas alterações legais. Dentre os diversos princípios, nela insculpidos, vale salientar que o ensino será ministrado em igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e respeito à liberdade e apreço à tolerância.
Optei por destacar apenas esses princípios porque o preconceito, racismo e bullying nas escolas e universidades são algumas das principais causas de evasão escolar e de traumas que podem gerar muito sofrimento e prejuízos no desenvolvimento cultural e profissional das vítimas dessa crueldade. Não é por nada, que a LDB determina que os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, também terão a incumbência de: “promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas”.
O entendimento do STF
Conforme publicado Boletim do STF EM FOCO, de fevereiro de 2023, o STF, por unanimidade, julgou inconstitucional a lei do Estado de Rondônia, por entender que “os estados“ têm competência concorrente para legislar sobre educação, mas devem obedecer às normas gerais editadas pela União, na forma do artigo 24 da Constituição Federal.
Consoante o Ministro Fachin, que foi o relator dessa ADI, a LDB “engloba as regras que tratam de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente”. Outrossim, ele destacou que “de acordo com a supracitada lei, compete à União estabelecer competência e diretrizes para a educação infantil, de modo a assegurar formação básica comum. Isso porque, no âmbito da competência concorrente, cabe à União estabelecer regras minimamente homogêneas em todo território nacional, o que já foi feito”.
Com base nesses pontos, os ministros, de forma unânime, entenderam que “a proibição expressa feito (sic) pelo Estado de Rondônia da “linguagem neutra” estabeleceu regra específica sobre o modo de utilização da língua portuguesa, ou seja, sobre o modo de ensino do idioma oficial da República Federativa do Brasil apenas naquele território, logo violou norma geral editada pela União, qual seja, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996).
O ministro Nunes Marques acompanhou o relator pela inconstitucionalidade, mas foi vencido em relação ao argumento de que “são inconstitucionais tanto as leis estaduais que proíbam o uso de determinada modalidade da língua portuguesa, quanto as que impõem, pois ambas tratam sobre o uso da língua portuguesa, currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino o modo de exercício da atividade docente, logo são de competência privativa da União”.
De forma semelhante, o ministro André Mendonça também entendeu a lei inconstitucional, mas destacou que “norma estadual ou municipal que disponha sobre a língua portuguesa viola a competência legislativa da União.
Assim, o STF não analisou o tema da inserção ou não da “linguagem neutra” no currículo das escolas, mas apenas a inconstitucionalidade da lei. De forma alguma foi autorizada ou determinada a inclusão da linguagem “neutra” nas escolas.
Confesso não ser fã de uma “linguagem neutra” que impossibilite a atual. Os brasileiros, de um modo geral, têm dificuldade com verbos impessoais, com substantivos comuns de dois gêneros, problemas com a grafia e a ortografia, insegurança na conjugação e concordância nominal e verbal, para citar alguns dos desafios do uso da língua portuguesa. Além da resistência por parte de grande parte da população, o emprego da “linguagem neutra” traria novas grafias com consequentes alterações nas conjugações e concordâncias nominais e verbais já existentes e, com certeza, outros problemas tais como: compreensão das palavras incluídas com a utilização do sufixo “e” ou pronomes.
Acolher, respeitar e valorizar a diversidade não se faz pela imposição de uma modificação no idioma, por uma nova forma de expressão, mas sim através de ações.
Seria mais produtivo para proteger as pessoas que são discriminadas em razão da sua identidade ou orientação sexual, que existisse uma escola pública ou privada mais inclusiva, onde ocorra realmente a demonstração de empatia e se acredite nas potencialidades independentemente da individualidade de cada um, que desse voz ao aluno para que ele se sentisse motivado a participar daquele ambiente; que promovesse atividades integradoras, trabalhos em grupos que favorecem a aceitação das diversidades pelos demais alunos e professores.
Causaria um impacto bem mais positivo para a comunidade LGBTI a implementação de um quadro de carreira que verdadeiramente melhorasse os salários dos professores, a disponibilização efetiva da tecnologia para os professores e alunos, a presença de pedagogos especializados que sejam facilitadores no processo de busca de entendimento que parte do aluno, a assistência de mediadores de conflitos que venham a surgir com as famílias, com os professores ou com os alunos, criando condições para que todos superem eventuais crises da forma menos traumática possível.
Além disso, uma maior fiscalização das escolas com relação ao cumprimento da LDB, inclusive das escolas privadas, pois ainda que sejam religiosas, não podem discriminar as pessoas e razão da sua identidade sexual, e o Brasil é um país laico. Saliente-se, a discriminação por identidade sexual fere a LDB, e a homofobia foi equiparada, pelo STF, ao racismo.
Assim, questiono se não seria quase um estímulo para brincadeiras ou deboches a utilização da “linguagem neutra”, um “tiro no pé”, um desperdício de energia que deveria ser focada em ações mais benéficas para a comunidade LGBTI.
Parece-me que somente quando as pessoas entenderem que preconceito é uma atitude negativa do indivíduo, uma postura que revela muito sobre o preconceituoso, que deixa evidente a sua ignorância, falta de conhecimento, intolerância, hostilidade e incapacidade de entender o outro, quiçá sua frustração ou inveja por não ter conseguido de fato viver como gostaria, teremos um mundo mais justo e igualitário, o famoso “amor”, palavra que tantos usam em vão, até mesmo em nome de “Deus”.