Há livros – falas, idem – tão substantivos que qualquer comentário a respeito poderia soar como um adjetivo dispensável. Daniel Scola – Aluno da tempestade (Citadel, 2024) – é um deles. Diante da leitura, restam duas alternativas: a) um silêncio clamando que outros ouçam-leiam diretamente o texto, b) pinçar, nele próprio, trechos representativos da ideia do seu todo. Aí vão três:
1. “O tipo de jornalismo que eu praticava e que muita gente estava acostumada a receber talvez não seja possível de ser feito, sobretudo por causa das limitações de fala, minha vocação.”
2. “Este livro foi escrito a partir do momento em que percebi não poder contar a história oralmente, mas escrevê-lo era possível.”
3. “O câncer me acenou com essa possibilidade da morte iminente, e respondi denunciando-o, mas tomando como lição a iminência da perda da vida.”
Haveria punhados de outras passagens com a mesma pujança, mas foi preciso escolher. Também teria – é narrativa – outros ângulos por onde olhar a experiência do autor que, como repórter, cobriu os grandes terremotos no Chile, Japão e as eleições americanas, antes de assumir um programa de enorme audiência no rádio. Depois adoeceu, depois lutou muito com as agruras do corpo e da alma, depois recuperou-se, apesar das marcas dessa luta.
Mas já corro o risco de macular com adjetivos as substâncias vitais da escrita, em especial essa do quanto a experiência do Scola nos mostra que pode estar aí o maior desafio de nossa curta existência: lidar com os limites de todos os dias, as sombras das pequenas mortes, dentro e fora, e que vamos negando com uma onipotência ancestral, mas hipertrofiada, nos dias de hoje. E foi preciso que essa sombra se agigantasse para que Daniel Scola pudesse reconstruir (literalmente) a sua vida, passando a agarrar cada fiapo de sol que se apresentasse.
Sei que eu me contradigo, mas o que fazer se não optei pelo silêncio? O subtítulo é uma promessa perigosa: as lições da maior batalha de minha vida e como elas podem ensinar você. Sabemos o quanto é difícil que livros possam ajudar diretamente, sem que uma experiência os acompanhe. Aí é que está: o relato enxuto e vivido de Daniel Scola acaba mesmo dando essa lição já antecipada pelos poetas. Para um deles, todos os encontros são adeuses e são extremas todas as horas. Para outro, observar diariamente o aeroporto ensinava-o a partir.
O livro de Scola dá-nos, a cada página, uma lição de ficar para fruir o que um único dia pode oferecer, dentro de seus limites, o que não é pouco. E tem algo ainda maior: o seu protagonista só pôde aprender com a tempestade, porque ouvia música o tempo todo e contava com uma amorosa matriz de apoio, entre esposa e amigos.
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Foto da Capa: Divulgação