A esquerda perdeu esta eleição. Por todo o lado, vemos análises sobre o tema do futuro da esquerda. Reflexões que querem que ela se atualize, que se recicle, que se incorpore ao status quo, enfim, é a esquerda no divã. Para mim, do militante que fui ao simpatizante que me tornei, ser de esquerda também significa ser capaz de enfrentar seus próprios medos. Agora, o medo da esquerda é saber se consegue voltar às comunidades e lutar para criar uma nova cultura popular dentro do capitalismo, que tenha, como no passado, caráter revolucionário, já que a ideia de ficar como observador só leva à devoração neoliberal. Agora, o medo da esquerda não é se é capaz de fazer uma guerra contra a política neoliberal, que continua de vento em popa, mas se tem instrumentos para uma guerra contra a alienação das classes populares feita pelo sistema político que está aí.
Tenho tentado argumentar que o que está aí é uma guerra simbólica, que é isto que deve unir as esquerdas locais e regionais em sugestões de suas bases, de seus afiliados ou simpatizantes para reflexão conjunta. Tenho sessenta anos, quarenta dos quais vivendo as atribulações de ser de esquerda. Não me filiei porque queria manter a autonomia de pensamento; achei melhor ser um servidor público de esquerda, fazer meu trabalho de educação política nas escolas da periferia por mais de trinta anos, com conteúdo, métodos e objetivos de esquerda. Por isso, sempre fui uma espécie de outsider de esquerda: escrevi contra os neoliberais, mas também fiz minha crítica à esquerda. Fui o único a escrever a primeira crítica do papel das gestões neoliberais na enchente, mas falam mesmo é do livro da RBS, e fui um dos primeiros a fazer a crítica ao que os neoliberais fizeram em termos de educação em seu primeiro governo, o do Fogaça. Claro que ninguém leu. Claro, como disse, sou um outsider.
Escrevi, refleti, pesquisei, então acho que posso fazer algumas sugestões. Elas são as seguintes. A primeira é que é preciso de uma aliança de esquerda. Ok, aí nada de novo. Mas é que para fazer uma aliança, é preciso estar em sintonia, ter uma mesma linguagem. Aliança é sempre, em primeiro lugar, uma aliança de comunicação. Sério, nem nós de esquerda nos entendemos mais. Não porque sejamos muitos, mas porque nos dividimos muito. Tem a geração do partido, que está aí sustentando a luta política, tem a geração que já participou mais, mas está fora, mas de olho, como a minha, tem a outra que é militante universitária e tem aqueles que foram de esquerda e já são considerados de centro, como o PDT. Sejamos quem sejamos, sabemos que o mal está na direita e na extrema-direita. Nossa discussão interna é tão grande que sobra apenas o fogo amigo que beneficia a direita. Por isso, é preciso um debate interno, mas também um externo, que seja de reflexão externa. Além muros das bolhas de WhatsApp. A comunicação precisa sintonizar a esquerda, mas também sair da militância para os agentes coletivos de esquerda.
A segunda é ampliar a capilaridade social que só os agentes coletivos de esquerda podem fazer. Esse esforço deve começar por aqueles que acredito terem maior capacidade de desempenho: os coletivos de professores. Por isso, o esforço da direita em doutriná-los, expurgar deles toda e qualquer ideologia. A direita sabe que eles contribuem diretamente para a crítica do status quo, da dominação. Eles não estão facilitando o trabalho do professor, ao contrário. Urge fortalecer os professores de esquerda, como também os médicos de esquerda, os arquitetos de esquerda, todos os profissionais que, em suas áreas, ainda defendem o ideal de esquerda como sociedade. Em maior ou menor grau, são sempre atores anticapitalistas ou críticos de suas mazelas. O que importa aqui é o público que alcançam. A capilaridade está na construção cotidiana, não nas vésperas de eleições. Uma aliança multiprofissional de esquerda, o que só pode ser feito através da atualização de sua comunicação interna via redes profissionais.
A terceira é a realização de uma discussão da produção simbólica na política. Ela é apenas uma parte de algo maior que a esquerda deveria dominar, e aparentemente não domina, a da produção simbólica em geral. Pois ela responde à pergunta de como as pessoas pensam o que pensam, sentem o que sentem, desejam o que desejam. Como são manipuladas para pensar o que pensam e sentem? Para que, para reproduzir? Exato, e por isso é preciso denunciar, mostrar os elementos de sua composição, o que pega, como reelabora e que usos faz dos símbolos. Conhecer os meios de comunicação, seu funcionamento e como produzem sentidos é essencial para a produção política, não porque se trata de pensar as campanhas eleitorais, mas para pensar como a direita se faz hegemônica. Somente quando forem denunciadas as estratégias de legitimação da direita, poderemos encontrar as bases para a construção de uma linguagem política de esquerda popular. Não há como construir uma comunicação de esquerda sem desmontar a da direita: mas sabemos como fazê-lo? Estudamos isso? Argumentamos isso?
É isso que chamo de pesquisa semiótico-materialista crítica. Dei um exemplo aqui (https://abre.ai/lo37 ). Sim, ninguém leu. Pois é, se pesquisassem, achariam. É disso que se trata, precisamos pesquisa. Ela é a quarta base de reflexão que proponho à esquerda após essas eleições. Como entendo, ela parte da análise dos significados dos signos da direita, mas também da recuperação dos da esquerda. Não é possível que o ideal comunitário tenha perdido seu valor. Essa é uma pesquisa conceitual, ela vai aos conceitos de Negri e Dardot e os demais autores contemporâneos para entender o comum, mas também precisa avançar em termos locais para a análise e para propor uma estética, o que significa uma forma de visualização do que é preciso fazer em termos políticos para as massas, reelaborar o ideal revolucionário. E, como diz o poeta, não podemos esquecer a poesia jamais.
É que somente uma pesquisa de signos pode dizer por que, depois de tanto lutar, de ir às ruas, de discutir, a esquerda perdeu mais uma vez aqui em Porto Alegre. Não só aqui, mas também em outras cidades. Sim, sei, mas também ganhou, é claro. Não foi um trabalho fácil. O problema é: por que aqui, que parecia que seria, depois da enchente, não o foi? O que essa derrota ensina? Para mim, o trabalho duro que vem pela frente agora é desmontar anos de alienação produzidas nas massas que asseguraram a vitória política da direita. Para que as massas possam ter independência política, o que aqui significa escolher com base em conhecimento de projetos claros, é preciso que sejam capazes de decodificar a produção simbólica em que estão imersas. A realidade do discurso de direita é enganadora e está em vários lugares: o primeiro deles é que o mundo que está aí de trabalho precário veio para ficar. Mas para isso, a própria esquerda precisa formar seus quadros com mais análise e interpretação. O que significa ler os autores contemporâneos da esquerda que já criticam as formas do trabalho atual. Deixe-me ver? Você é de esquerda, certo, mas ainda não leu Vicent de Gaulejac? Pois é, esse é o problema…
Quando eu fui picado pela mosca vermelha da esquerda, eu era um estudante de história. Naquele tempo, nós íamos ler em grupo na casa de um professor, o Luís Dario, os capítulos de obras que na época eram a nossa formação revolucionária: sempre Karl Marx, em especial a Crítica da Economia Política, A Ideologia Alemã, O Capital. Eu me orgulho de ter pertencido a uma geração que primeiro lia para depois dar pitaco. Que primeiro se apropriava das categorias mais recentes de que dispunha e ia para a realidade. Não é um trabalho fácil. Não é algo rápido. Isso era a formação de uma elite universitária crítica nos anos 80, imagine agora que tem muito mais literatura atualizada e que é preciso chegar às massas. É preciso se preparar para desmontar o processo de alienação para assegurar independência política, independência de voto, pois isso exige o domínio de categorias de análise crítica do capital. Eu estive numa posição privilegiada para fazer minha leitura, me atualizar, pois não estava ocupado com as urgências do movimento político, muito menos com seus compromissos práticos. Talvez por isso, imagino, seus integrantes tenham ficado em suas referências originais, as mesmas talvez de minha formação original, afinal, a minha era uma geração muito próxima das origens da esquerda. Por isso, entendo a dificuldade de muitas lideranças de incorporarem novas linguagens para a interpretação do fato político. Mas não acredito que seja possível fazer reação à direita apenas com uma frente única, apenas com referências de Gramsci, etc., é preciso mais, é preciso dotá-la de novas ferramentas, basicamente uma nova dialética de comunicação simbólica com as massas precisa emergir.
Estamos diante de uma guerra de “quarta geração”. Na tipologia das guerras, seja qual tipo for adotada, há sempre uma evolução no modo como é operada. Das guerras entre nações às guerras entre forças políticas, é sempre do modo como capturamos as massas que se trata, seja a das fileiras ou do social. As que se baseiam na guerra ideológica exigem que a esquerda reescreva a história de suas lutas, reveja seus momentos de avanço e recuo e o contexto onde realizam seus objetivos. No nosso caso, eu entendo que, enquanto a desalienação das classes populares não for um objetivo de longo prazo, não seremos capazes de desenhar estratégias narrativas e simbólicas para a chegada ao poder. Era o que dizíamos: tudo dependia da educação, só não sabíamos que forma era. Sim, educação revolucionária, crítica do capital, defensora do trabalhador. Começa na escola, mas vai além dela.
Estranho que a esquerda, que tem escritores, fotógrafos, cineastas, professores, profissionais liberais em seu campo, nunca os reúna para pensar de forma coletiva estratégias políticas, delegando-se este trabalho sempre aos profissionais da política. Pensamos que as novas ferramentas tecnológicas e linguagens estão distantes das massas políticas, mas acredito que de seus atores também. Li que Lula já decidiu quem será o candidato a senador e a governador do RS. Perdemos uma batalha e já estamos nos esforçando para perder a guerra? De onde saiu isso? As eleições devem servir para uma autocrítica produtiva. Urgências estão ainda por vir. A continuidade da política neoliberal na cidade transformará não apenas sua aparência, mas a essência da cidade. Quando trabalhei por anos no Programa de Educação para Cidadania do Legislativo, eu tinha um objetivo; agora, aposentado, apenas posso dizer como vejo o mundo que está sendo destruído a passos largos. É preciso insistir que a guerra atual pode estar perdida, mas a guerra futura ainda não. É preciso insistir.
Insistir no quê? No conteúdo da esquerda. Que conteúdos fazem parte de nosso discurso? Que ideias defendemos, que agendas temos? A batalha de agenda parece ter substituído a batalha ideológica, a solução dos problemas do presente substituiu a sociedade do futuro. Ouço a propaganda do Itaú que diz “presente aqui daqui a 100 anos”. Quanta certeza! É desesperador que aceitemos que a “sociedade dos comuns” possa ser substituída pela “sociedade dos empreendedores”, algo que para mim é desesperador, mas não invencível. Ele é apenas um aspecto da nossa perda de programa e método de trabalho. Entendo que o que nos derrota é nossa ausência de conceitos, de uma leitura da realidade, cedemos a um empirismo fácil, improvisamos demais (que escolha foi essa de Lula?).
Vamos falar claramente: falamos que tudo tem de ter conteúdo. Uma aula, uma propaganda, enfim. No pensamento de esquerda, o que aprendi é que os conteúdos convergem para a luta de classes, a medula do movimento de esquerda. Quando esquerda e direita lutam, expõem seus conteúdos, fazem matéria de seu discurso problemas reais que são expressões sempre da velha luta de classes. Por isso gosto do pensamento de Zizek: ele pode parecer confuso às vezes, mas tira dos exemplos da realidade política contemporânea exatamente isso, a velha luta de classes. Estamos conseguindo mantê-la como conteúdo explicativo em nossa ocupação do espaço público? Como foi que deixamos passar ser a crítica o discurso de direita que ocupa sua dissimulação no tempo e no espaço? Como foi que não conseguimos mais desativar as operações alienantes com nossas melhores ideias emancipatórias? A esquerda tem a obrigação de ser melhor que seu oponente em seus conteúdos, expressá-los da melhor maneira, revelar uma política de construção do homem melhor, mais complexa e permanente.
Mas estamos prontos para isso? Não tenho certeza. Temos de ser capazes de denunciar os efeitos perversos de políticas neoliberais, seja na escola, nas políticas sociais, urbanas, etc. Mostrar a perversão da venda de escolas como fazem governadores de direita, a náusea que provoca ver que empresários dos ramos mais diversos adquirirem escolas. Isso não é a afirmação perversa da sua morte, da morte da educação? Mesmo sob o disfarce do uso da tecnologia mais avançada, é sempre a equação mais antiga do mundo e do homem que se trata, de que podemos ser tratados como objetos. É necessário derrotar essa visão neoliberal ou seremos realmente derrotados por ela mais cedo ou mais tarde.
Se tudo é conteúdo, seja de esquerda ou direita, então não há “conteúdo neutro” como não há jornalismo neutro. E a força da direita está justamente em afirmar isso em cada livro, cada jornal, cada programa de televisão, em suma, em cada mensagem. Cada um deles tem uma maneira de agir e pensar, fazem parte de um movimento de interesses específicos que busca seu destinatário. Quem dissemina conteúdos tem sempre responsabilidade social concreta. É sempre com uma origem e um destino. Não ter clareza do conteúdo e seu destino é uma irresponsabilidade, subestima o interlocutor, chantageia-o de forma a torná-lo refém em um tráfego de comunicação cheio de acidentes de percurso, objetivos camuflados de bençãos. Quem assume as responsabilidades sociais dos conteúdos que veicula?
Quando um professor entra em sala de aula, seus conteúdos têm origens e responsabilidades concretas. Se ele entra numa escola de periferia para dialogar com alunos pobres, é inevitável que o tom da interlocução seja marcado por esta condição. Exigir conteúdos neutros de professores que têm alunos em situação de desigualdade social é irresponsável, é intolerável, pois a premissa de seu trabalho de magistério é exatamente esta: a de que, pelo acesso à educação crítica, é capaz de combater a situação de desigualdade que vivencia. Mesmo se trata de médicos, etc.
Por exemplo, a história local exige hoje um trabalho completo, análise e organização de conteúdos de ensino. Não é possível imaginar o desenvolvimento social local sem estar vinculado às contradições gerais de desenvolvimento do capitalismo. Isso significa que o trabalho de preparo de aula dos professores está ligado sempre às condições de existência dos lugares em que suas aulas são ministradas. Por isso, a denúncia das reduções de carga horária das disciplinas de ciências humanas. Não podemos imaginar um mundo de filósofos desempregados quando se exige pensamento crítico.
Nenhum campo pode agora se separar da filosofia. A luta contra os fundos semióticos da direita, a parafernália de signos que é capaz de reunir para se propagar nas camadas populares, mostra que a esquerda precisa de uma semiótica de combate capaz de transitar e desmontar em vista das necessidades das comunidades mais pobres. Ela precisa de matrizes ideológicas de esquerda para enfrentar a ofensiva burguesa e não apenas desta, já que é também financeira e de empreiteiras que tomam a cidade. Precisamos mostrar a luta aberta, os valores neoliberais infiltrados na vida, na ética e na estética do capital. É preciso mostrar a obscenidade capitalista, os ídolos do mercantilismo, os modelos alienantes em que se baseia, a desumanização aguda que promove.
Não é atacar o que é óbvio apenas, mas o que é sutil na sua construção semiótica, a semântica neoliberal que atravessa nossos novos hábitos e costumes, as nossas instituições impostas por governos neoliberais. Não basta que compremos suas mercadorias, o que torna a vida um inferno é que compramos seus modos de vida e eles querem que sejamos eternamente agradecidos por isso. Quando vamos denunciar os estereótipos da propaganda que fazem em seus produtos, inclusive os políticos; quando falaremos claramente dos personagens que financiam esta publicidade, do entretenimento alienante que propõem, ou somos realmente todos palhaços frente a eles? É tão difícil assim usar exemplos de cidades ou países onde a esquerda esteja mais forte, apontar os processos de desprivatização em andamento? Alguém duvida que precisamos sim de meios de divulgação de esquerda para além de blogs, sites, páginas pessoais de figuras, etc.
Na época em que o PT estava na Prefeitura de Porto Alegre, nossas escolas eram capazes de ser escolas e revolucionárias. Havia coletivos de trabalho de professores, um ideal de educação emancipatória diversa da educação para empreendedorismo que está destruindo nossa rede. Isso acontecia porque os professores eram mestres e revolucionários, e eram revolucionários porque acreditavam na transformação social. É preocupante que não tenha sido pautado que o processo de domesticação da capacidade revolucionária de uma comunidade tenha começado pela escola, que agora criminaliza o professor de esquerda. Cabe uma cúpula de esquerda que, nos próximos anos, se abra para a participação de todos os agentes de esquerda, de várias camadas profissionais na luta democrática antineoliberal. É demais sugerir isso?
Foto da Capa: Freepik
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