“Era pequeno e brincava na praia
O mar bramia e erguendo seu dorso altivo
Sacudia a branca espuma para o céu sereno
E eu disse a minha mãe nesse momento
Que pode haver maior que o oceano?”
Casimiro de Abreu
O mesmo mar que fascinava o menino Casimiro – provavelmente na praia de Rio das Ostras, que fica perto da fazenda onde ele nasceu, no município que hoje leva seu nome – continua nos parecendo enorme e poderoso. E irresistivelmente atraente. Talvez porque seja uma sensação que foi experimentada pelos primeiros humanos que viveram sobre a Terra, se estiver correta a hipótese de que os Sapiens surgiram em algum lugar na costa da Namíbia. Ou ainda porque, mais recentemente, nossos antepassados foram desafiados a enfrentar o desconhecido se lançando ao mar em frágeis barcos de madeira ou palha.
Ou seria uma memória ainda mais antiga, impregnada em nossos genes, pois a vida se originou no mar, há cerca de 3,5 bilhões de anos, provavelmente junto a uma fumarola vulcânica, num ambiente quente e com abundantes compostos orgânicos e sais minerais, algumas moléculas, possivelmente alguma forma de RNA primitivo, tornaram-se capazes de replicar a si mesmas.
Pois essa imensa massa de água que cobre mais de 70% da superfície da Terra, que abriga 80% da vida do planeta e tem uma grande importância econômica para bilhões de pessoas, está irremediavelmente ameaçada pelas ações humanas.
Há pelo menos quatro processos, direta ou indiretamente associados às atividades humanas, que são os responsáveis pela destruição dos oceanos, pelo menos da forma que conhecemos: (1) aquecimento das águas, (2) acidificação, (3) pesca predatória e (4) eutrofização. Um quinto problema é a poluição plástica. Mas esse é um tema tão amplo que vou dedicar uma coluna futura especificamente para ele. A seguir vou descrever a seguir os quatro primeiros.
Aquecimento das águas
Os oceanos têm contribuído para reduzir o aquecimento da atmosfera e, consequentemente, a intensidade das mudanças climáticas, devido à sua capacidade de absorver carbono e calor. O oceano absorveu pelo menos um quarto do CO2 liberado pelos humanos na atmosfera e assimilou cerca de 90% do excesso de calor produzido pelos gases de efeito estufa. Não conhecemos bem todos os mecanismos pelo qual o excesso de calor é incorporado às águas dos oceanos, mas não há dúvida de que eles têm limites.
E talvez estejamos próximos disto. 2023 foi o ano em que se registrou as maiores temperaturas das águas dos oceanos. Se a absorção do excesso de calor for interrompida, isso significa que o aquecimento da atmosfera vai acelerar. E muito. Com todas as trágicas consequências que isso pode causar.
Por outro lado, o aquecimento das águas é prejudicial à vida marinha. Os oceanos são a casa de algo entre 500 mil e 10 milhões de espécies (essa diferença de números ilustra como sabemos pouco sobre eles). Além de representarem uma incrível biodiversidade, há no mundo muita atividade econômica relacionada com a vida marinha. E mudanças na temperatura das águas significam modificações na distribuição dos cardumes e outros animais marinhos. Com as águas aquecendo, grandes populações de peixes e outros animais vão migrar em busca de águas mais frias, causando perturbações imprevisíveis nos ecossistemas, eventualmente reduzindo as populações de espécies de interesse econômico.
Por outro lado, provavelmente a maior tragédia causada pelo aquecimento das águas nos oceanos seja o fenômeno denominado de “branqueamento dos corais” (coral bleaching em inglês), que é a primeira etapa no processo que leva à sua morte.
Os recifes de corais ocupam 1% da área dos oceanos e abrigam 25% da vida marinha. São a casa de 4.000 espécies de peixes, 800 espécies de corais e milhares de outras espécies.
O processo de branqueamento ocorre porque em cada um daqueles compartimentos que se observa numa colônia de corais existe um pequeno animal, um pólipo, que é o coral propriamente dito. Mas há também algas, denominadas de zooxantelas, que vivem em simbiose com os corais. Funciona da seguinte maneira: as algas fornecem, via fotossíntese, carboidratos, que são o principal alimento dos corais, e estes, por sua vez fornecem às algas CO2 e nutrientes.
No entanto, quando as águas aquecem acima de uma determinada temperatura as algas começam a secretar toxinas. Os corais então, para evitar o envenenamento, expulsam as algas. As algas são as responsáveis pelas fantásticas cores apresentadas pelos recifes de corais, que sem elas ficam esbranquiçados.
Acontece que, não tendo mais as algas para lhes fornecer alimentos os corais começam a morrer. O último grande episódio de branqueamento, que durou de 2011 a 2017, atingiu cerca de 80% dos recifes de corais do mundo. Desde então parte de recuperou. Mas uma parcela significativa foi perdida para sempre.
Estamos agora entrando no quarto e, tudo indica, pior episódio de branqueamento. E com uma má notícia para o Brasil. Os corais da nossa costa, que anteriormente pareciam particularmente resistentes ao branqueamento, já exibem sinais do fenômeno.
Os cientistas preveem que, se a situação permanecer como está, no final de século não existirão mais recifes de corais vivos. Seria uma tragédia inimaginável. Não só pela perda da biodiversidade e da magnífica paisagem marinha, mas também pelos aspectos econômicos, pois centenas de milhões de pessoas, em todo o mundo, inclusive no Brasil, dependem dos recifes de corais para seus empregos em áreas como turismo, pesca e atividades associadas.
Acidificação
Apesar do aquecimento das águas ter impactos relevantes sobre a vida marinha, a absorção do CO2 pelas águas dos oceanos resulta num fenômeno ainda mais grave: a acidificação, que está relacionada com o aumento do CO2 na atmosfera, devido às emissões humanas.
A atmosfera e a hidrosfera – da qual o componente mais volumoso são as águas dos oceanos – estão em equilíbrio térmico e químico. Nesse contexto, o CO2, dissolve-se nas águas formando os íons HCO3– e H+, sendo que esse último é o íon hidrogênio, responsável pela acidez da água (o pH, que é a medida da acidez de um líquido, significa “potencial de hidrogênio”). Assim, se o teor de CO2 aumenta na atmosfera, parte dele se dissolve nas águas, aumentando sua acidez.
Da grande quantidade de possíveis impactos da acidificação, o mais significante é o que envolve os organismos chamados de calcificadores. Esse termo se aplica a qualquer organismo que fabrica uma concha ou um esqueleto externo ou interno composto por carbonato de cálcio (CaCO3), ou ainda, no caso das algas, uma espécie de estrutura que dá sustentação à planta, na maioria das vezes também composta por carbonato de cálcio.
Há uma variedade incrível de organismos marinhos calcificadores, incluindo moluscos, mariscos, ostras, estrelas do mar e ouriços. Algas vermelhas e verdes também o são. Muitas espécies de corais são calcificadoras, assim como animais e plantas microscópicos pertencentes ao zooplâncton e ao fitoplâncton, que formam a base das cadeias alimentares.
A acidificação dificulta o processo de calcificação, a começar pela redução dos íons de carbonato (CO3–) disponíveis para formar o carbonato de cálcio. Quanto mais ácida a água, mais energia é necessária para a calcificação. A partir de um certo ponto, não apenas os organismos não conseguem mais obter a energia necessária para sintetizar o carbonato, mas a água do mar se torna corrosiva e o carbonato de cálcio começa a se dissolver.
A ação dos calcificadores ajuda na captura de carbono. Quando as suas carapaças se acumulam no fundo do mar, formam sedimentos e depois, como progressivo soterramento, rochas calcárias, onde boa parte do carbono da Terra está acumulado. Em suma, mais CO2 dissolvido nas águas significa menos calcificação, e menos calcificação significa mais CO2 nas águas e na atmosfera, num processo de retroalimentação que pode acelerar o aquecimento global e suas consequências.
Pesca Predatória
Quando me refiro à pesca predatória, não estou me referindo aquele pescador artesanal que sai com seu barquinho para obter o seu sustento. Estou falando da pesca industrial, com seus grandes navios – verdadeiras máquinas de matar – navegando em alto mar, e praticando a chamada pesca de arrasto, em que enormes redes varrem o fundo marinho carregando toda a vida que existe por lá. A maioria constituída por animais que depois são descartados, geralmente sem vida, por não terem valor comercial. E ainda chamam isso de “pesca acidental”.
Vejamos alguns números preocupantes.
A pesca de arrasto destrói todos os anos cerca de 2,5 bilhões de acres1 de fundo marinho. Para se ter uma ideia, a destruição das florestas tropicais consome 16 milhões de acres no mesmo período.
Uma das espécies afetadas são os tubarões. Eles são essenciais para manter as populações marinhas em números adequados e, portanto, para o equilíbrio dos ecossistemas. Pois esses belos animais, que existem há centenas de milhões de anos, tão vilipendiados por sua “agressividade”, matam 10 pessoas no mundo a cada ano. Nós matamos 30 mil tubarões. Por hora! E por que fazemos isso?
Quarenta por cento dos tubarões são mortos na pesca acidental. Mas os tubarões são também pescados por suas barbatanas, uma indústria que envolve dezenas de bilhões de dólares, principalmente pela apreciação dos chineses, e agora por muita gente pelo mundo afora, da sopa de barbatana de tubarão que, alegam sem qualquer evidência, que teria propriedades afrodisíacas.
Os golfinhos e as baleias também são importantes para a vida marinha. Quando vão à superfície para respirar, eles fertilizam pelas fezes pequenas plantas marinhas chamadas de fitoplâncton – que absorvem quatro vezes mais CO2 que toda a Floresta Amazônica e geram 85% do oxigênio liberado para a atmosfera.
As baleias, nos últimos anos, estão sendo poupadas, embora alguns países como o Japão e a Noruega vivam ameaçando retomar sua caça. Mas os golfinhos continuam sendo capturados em grande quantidade, principalmente pela pesca acidental. Os números são estimados em centenas de milhares por ano, seja pela pesca acidental, seja pela destruição de seus habitats.
Outra imagem que causa comoção é a das tartarugas com canudos de plástico nas narinas. Esse tipo de acidente mata mil tartarugas no mundo a cada ano. Enquanto isso, apenas nos Estados Unidos, 250 mil tartarugas são mortas todos os anos pela pesca acidental.
Em resumo, a pesca industrial captura 2,7 trilhões de peixes por ano no mundo, 5 milhões por minuto. E a maior parte nunca chega às nossas mesas. Esses números levam a uma conclusão inevitável. Se continuarmos nos moldes atuais, em 2050 não haverá mais pesca, por falta de peixes e outros tipos de frutos do mar.
Eutrofização
A eutrofização é um fenômeno que ocorre quando um corpo de água recebe uma grande quantidade de efluentes com matéria orgânica enriquecida com minerais e nutrientes, que induzem o crescimento excessivo de algas e plantas aquáticas. Esse processo pode resultar em esgotamento do oxigênio do corpo d’água após a degradação bacteriana das algas, transformando o corpo d’água numa massa sem vida.
Os principais causadores da eutrofização são: uso excessivo de nitrogênio e seu principal acompanhante nos fertilizantes sintéticos, o fósforo, nas lavouras; os despejos de esgotos industriais e urbanos, o lançamento de dejetos pelas fazendas marinhas; e o uso de combustíveis fósseis. É um problema que começa nos continentes, mas já atingiu os oceanos.
Nas fazendas, menos de 50% do nitrogênio adicionado globalmente às plantações é realmente absorvido pelas plantas. A maior parte do restante é perdido para a natureza, incorporando-se às águas superficiais e subterrâneas. O nitrogênio carregado pelos cursos d’água muitas vezes acaba no mar.
Ao todo, existem mais de quatrocentas zonas mortas em todos os oceanos, cobrindo uma área quatro vezes maior do que em 1950. A maior, no relativamente fechado Mar Báltico, no nordeste da Europa, com uma área de mais de 50 mil quilômetros quadrados. No Golfo do México, onde desemboca boa parte da água que passa pelo maior celeiro americano, o Meio-Oeste, tem uma zona morta cada vez mais ampla, que em alguns verões chega a 23 mil quilômetros quadrados.
No Brasil, há poucos dados sobre as zonas mortas marinhas. Mas há pelo menos sete delas. A maior parte na região Sudeste, associadas à foz de grandes rios e às grandes cidades costeiras.
O maior crime da humanidade?
Se a humanidade fosse um dia julgada por um tribunal cósmico provavelmente o pior crime pelo qual seríamos condenados seria a destruição que estamos promovendo nos oceanos. Eu sei que há muitas outras coisas acontecendo, mas ver que estamos sendo capazes de deixar os mares do planeta sujos e sem vida, é muito triste. Resta saber se faremos algo para evitar que isso continue. Pense nisso enquanto come um sushi no seu restaurante japonês preferido.
Notas:
11 acre equivale a 4047 m2.
2Esta coluna foi em parte baseada no capítulo sobre os oceanos do livro “Planeta Hostil”, de minha autoria, publicado este ano pela Editora Matrix, de São Paulo. Pode ser adquirido no seu site: matrixeditora.com.br e na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Freepik
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