História de grupo que permaneceu por 17 dias em condomínio e reflexões sobre o relacionamento entre vizinhos durante a enchente em Porto Alegre
Por mais que tenhamos ficado sabendo de histórias inacreditáveis de atingidos pela enchente deste ano, creio que agora, depois da água baixar, precisamos refletir sobre as situações vividas. Temos muito a aprender com o que vivemos. E, conforme escrevi na coluna da semana passada, vou contar o que passou perto de onde moro, no Menino Deus, em Porto Alegre. Um grupo de moradores de um condomínio de classe média fez o impensável: permaneceu durante 17 dias de enchente para cuidar de 22 animais de estimação, a maior parte gatos. Por tabela, também ficaram de vigias do local, que ainda correu o risco de ser assaltado.
Para conseguir ficar no prédio, cercado de água por todos os lados, houve uma intensa mobilização. Através das lentes da investigação apreciativa, vou escrever um pouco do que a Vânia Darlene Martins Soares, moradora do quarto andar, me contou. Para começo de conversa, o grupo se sustentou devido à organização e ao apoio mútuo. E foi mega desafiador em vários sentidos, principalmente para driblar a ansiedade daqueles dias.
O que mais me encantou foi o quanto o senso de coletividade pelo melhor a ser feito naquele momento dominou a tomada de decisões. Primeiro: o grupo se empenhou para que todas as idosas saíssem do prédio. Só ficou quem tinha condições de segurar a onda.
E só conseguiram permanecer porque foram feitos muitos contatos com quem estava fora de risco. E também porque contou com o apoio de pessoas que estavam longe das áreas de enchente. Ao constatarem que os bichos não conseguiriam se adaptar em um outro local, algumas moradoras começaram a se articular para cuidar dos animais. Só que, assim como todo mundo que foi atingido, ninguém imaginava que demoraria tanto tempo para baixar a água.
Moradores de dez dos 72 apartamentos deixaram as chaves com o grupo. Sem energia, o pessoal começou a retirar todos os alimentos que iriam estragar para destinar para abrigos. Isso porque se conseguiu emprestada uma roupa de pescador, aquelas que vão até abaixo dos braços, chamada pantaneira, e um colchão inflável. As comidas que eles não conseguiriam comer, como perecíveis, foram levadas até a avenida Ipiranga, onde outras pessoas pegavam para entregar nos pontos de recebimento. Ou seja, onde foi estabelecida a confiança, tudo que estava na geladeira e poderia estragar foi retirado pelo grupo. Feliz de quem voltou para casa e não se deparou com cheiro de podridão!
Para não ficar totalmente sem energia, o pessoal conseguiu contatar uma pessoa que trabalha em Torres, mas reside em Porto Alegre, para que comprasse e trouxesse um gerador ao prédio, um pouco antes de o caos se instalar por completo na capital. Com isso, foi possível manter uma geladeira com alimentos. Todas as refeições eram coletivas.
Duas pessoas, geralmente que usavam essa roupa especial para andar na água, ainda conseguiram puxar um contêiner que passou boiando na rua e amarrá-lo num poste. Todo resíduo orgânico era recolhido depois de armazenado no segundo andar e disposto no contêiner. Vale lembrar que todos os dias se tinha muita areia com os excrementos dos gatos para serem recolhidas.
Depois de alguns dias, descobriram que uma torneira na garagem tinha água. Então conectaram uma mangueira, que foi levada até o segundo andar para que todos pudessem encher os baldes d’água. Com energia, conseguiam carregar celulares e trocar mensagens com redes de apoio.
Vânia ainda salientou que, mesmo com temperamentos diferentes, quem ficou procurava relevar comportamentos e situações conflitantes. Em vários momentos, a tensão pairou no ar. “Nesses momentos ficávamos em silêncio”, confessa Vânia, lembrando da sensação de angústia ao saber das notícias pelo rádio, especialmente quando divulgaram que a represa da Lomba do Sabão, que fica dentro do Parque Saint Hilaire, em Viamão, estava em perigo de ser rompida (aliás, você já se perguntou o que pode acontecer se essa barragem não tiver manutenção?). Vale lembrar que o DMAE é que deveria cuidá-la, mas o Parque passou para a prefeitura de Viamão.
A vizinha lembra também dos barulhos de barcos a remo, devido ao silêncio que imperava na situação. Depois de as equipes de busca suspenderem os trabalhos, eles constataram a presença de possíveis saqueadores. Pois viam a movimentação de gente com lanternas, procurando não fazer barulho para entrar em locais que tinham sido abandonados.
Esse contexto, onde um grupo de pessoas conseguiu superar tantas dificuldades e ainda solucionar problemas para a coletividade, merece ser estudado com profundidade. Como ex-síndica, que procurou tomar algumas medidas no prédio, como retirar todos os móveis do térreo, subir o elevador e desligar a chave geral antes da água subir, creio que precisam ser estabelecidos protocolos de como agir para o estrago não ser pior do que já foi. Estejamos alerta. Especialmente se os governos eleitos se preocuparem mais em atender às demandas de quem financiou suas campanhas do que com o bem comum.
Foto de Capa: Acervo da Autora
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