Pergunto à Inteligência Artificial o que é um sussurro. Em milésimos de segundos, vem a resposta: “é um tipo de fala suave, de volume muito baixo e tom intimista, usado para comunicar algo de maneira discreta ou reservada. Normalmente, sussurra-se para evitar ser ouvido por outras pessoas próximas ou para criar um efeito de segredo ou cumplicidade entre as partes. Em muitas situações, o sussurro é utilizado para mostrar delicadeza, respeito ou um sentimento especial de proximidade e confidência. No contexto literário ou poético, o sussurro também pode simbolizar algo suave, efêmero, ou carregado de mistério, como uma ideia ou emoção que se expressa de forma sutil e quase silenciosa”.
Em outra conversa, a IA informa: “sussurro é definido como um substantivo masculino que significa murmúrio, zumbido ou cicio, referindo-se ao som suave e indistinto de vozes falando baixo, como o vento passando pelas árvores. Também pode descrever um ruído leve e suave, como o produzido pela água corrente ou o zumbido de insetos, além de ter o sentido de boato ou notícia não confirmada. Essas definições destacam o caráter sutil e quase imperceptível do sussurro, seja ele de origem humana ou natural”.
Busco também no Pai dos Desconectados, o velho e bom Aurélio, que até há pouco tinha para mim a moderna e fundamental função de suporte para deixar o notebook mais alto na mesa.
Na página 1910, encontro: “sussurro. [Do lat. Susurru] S. m. 1. Som confuso; murmúrio. 2. Ato de falar em voz baixa. 3. Zumbidos de alguns insetos.
Já o Houaiss, na sua página 1797, traz: “sussurro s.m. (1609) 1 zumbido de certos insetos 〈o s. das abelhas〉 2 leve ruído de voz(es) de pessoa(s) que fala(m) baixo; murmúrio, cochicho 〈um s. de vozes vinha da sala ao lado〉 3 o som produzido pela folhagem que farfalha; rumorejo 〈ouvia-se o s. das árvores〉 4 FON emissão vocal sem vibração das cordas vocais; cochicho ◎ etim lat. susurrus, i ‘id.’ ◎ HOM sussurro (fl.sussurrar)”.
Não importa a fonte. Em qualquer uma delas, há uma certeza: um sussurro deve ser feito em voz baixa!
Mas eu, você e todo mundo conhecemos vários exemplos de gente que sussurra em voz alta.
Pouca coisa é tão irritante nessa vida!
Veja só o que me aconteceu uma vez – faz só uns 35 anos – na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. Eu estava pesquisando sobre Manuel Bandeira e com vários livros do grande poeta sobre a mesa. A poucos metros, em outra mesa, havia dois amigos. Um deles não parava de sussurrar em voz alta para o outro, que estava a, sei lá, meio metro de distância:
– Esse livro é muito chato. Por que escolhemos este tema para a nossa dissertação?”
Depois:
– Quando acabarmos, vamos até um bar para tomar uns chopes?
Cito essas duas, mas foram várias frases. Mesmo a dez metros de distância, eu escutava aquela sussurraiada toda e entendia cada palavra.
Olhei feio uma vez.
Duas vezes.
Três vezes.
Não adiantou.
É impossível ler um livro quando há uma voz irritante penetrando em nossa mente e barulhando o silêncio da biblioteca.
Não é que eu não consiga ler com barulho.
Não é isso.
*
Na década de 70 e 80, quando eu frequentava muitos os estádios de futebol, chegava nas partidas mais importantes quatro ou cinco horas antes do início da partida.
Eram outros tempos e os estádios superlotavam e precisávamos garantir um bom lugar nas arquibancadas.
Muitas vezes fui assistir aos jogos do Grêmio acompanhado pelo Carlos Drummond de Andrade. Dos livros, digo.
Estou no Morumbi. Cerca de 80 mil pessoas lotam o estádio. A torcida gremista, na expectativa do seu primeiro título nacional, canta:
– Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Grêmio. Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Grêmio. Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Grêmio, seremos campeões!
Leio, serenamente:
– Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes.
Estou sozinho no quarto. Estou sozinho na América…
Uma vez fui ao estádio do Pacaembu, com o “Dom Casmurro”, do Machado de Assis. É Grêmio e Flamengo. Terceiro jogo entre Grêmio e Flamengo na Libertadores, que decide quem passa à outra fase.
Ao meu lado, torcedores uniformizados puxam o coro:
– Araruta, Aratura, eh, eh, filho da…
Mas todos os meus olhos e ouvidos estão centrados nos olhos da Capitu:
– Olhos de cigana, oblíqua, dissimulada. Olhos de quem percebe tudo, tudo sem dizer nada…
O que incomoda não é o barulho, mas a falta de respeito!
No estádio de futebol, sou o intruso com o livro na mão. Deveria é picotar cada uma das páginas e preparar-me para jogar tudo para o alto na entrada triunfal do meu time em campo! Mas sigo feliz e concentrado com meu livro, até que uma hora antes do início da partida, quando fecharei as páginas e gritarei mais que qualquer outra pessoa no estádio. É fundamental ajudar meu time a escrever mais uma página épica da sua história!
Mas não na biblioteca. Aqui, o sussurro alto dói nos ouvidos. Duas vezes já fui reclamar com os funcionários. Mas ninguém faz nada. É o meu quarto “psiu”, mas o babaca não cala a bola.
Não aguento mais e grito:
– Cara, pelo amor de Deus! De que adianta sussurrar em voz alta? Tu não sabes que o sussurro deve ser obrigatoriamente baixo? Estamos na biblioteca. Pega uma porra de um dicionário e leia o verbete “sussurro” ou o “sussurrar”.
Quase sem respirar, sigo no meu dia de fúria.
– Eu, Deus, o Manuel Bandeira e todo mundo nesta biblioteca estamos ouvindo cada uma das tuas palavras. Ao invés de sussurrar, por que não grita de uma vez, como estou fazendo agora? Ou melhor, por que não vais para um bar como sugeriu e deixa a gente em paz?
As pessoas me olharam espantadas. Assustadas, talvez. O alvo da minha ira também. Ficou quieto. E eu quase fui expulso da biblioteca. Mas o funcionário só pediu para que eu me acalmasse, talvez por ter culpa no cartório por não ter agido nas vezes em que reclamei.
Outra vez aconteceu no cinema da Fundação Getúlio Vargas, também em São Paulo. Era uma tarde chuvosa, de uma quarta ou quinta-feira. Fui assistir ao Festival Fellini. Cheguei com 15 minutos de antecedência para a primeira sessão do dia. A sala de cinema estava completamente vazia. Contei o número de fileiras e entrei na que ficava exatamente no meio. Também contei os números dos assentos. E também escolhi o que também estava no meio do caminho.
– O melhor lugar do cinema – comemorei!
Aos poucos chegaram mais algumas pessoas. Cinco! Éramos seis, como na conhecida novela (adaptada do romance homônimo de Maria José Dupré). Quase na hora do filme começar, ouço um movimento, olho para trás e vejo um casal caminhando apressado para o início da magia.
Tanto lugar no cinema. As pessoas espalhadas. Dois casais bem espaçados. Eu e um outro sujeito a quilômetros de distância e o tal casal se senta exatamente atrás de mim. Grudado no meu cangote.
Mal começam as propagandas e ele já dá a primeira sussurrada.
Nos trailers dos próximos filmes, outros sussurros.
O filme começa. Ele sussurra, alto:
– Fellini quis mostrar com essa cena que…
Pouco depois:
– Esse cachorro não passou por acaso. Fellini quis dizer que…
Na terceira vez – e eu esperei muito – virei com certa delicadeza para trás.
Na quarta, olhei fixo.
Pouco depois, fiz o “schhhhhhh”.
Ele continuava.
– Repara que essa cena…
Não deu mais para aguentar.
Virei e disse:
– Pô, se ao menos tuas observações fossem inteligentes!
Ouvi, lá longe, um grito constrangedor:
– Silêncio!
Mas pouco depois aconteceu algo mágico. Surpreendente.
– A companheira dele – acho que namorada ou esposa – também sussurrou. Foi alto. Também ela não sabia sussurrar:
– Bem feito!
Nunca pensei que um sussurro alto seria tão doce e agradável aos meus ouvidos…
*
Tem a história de um parente meu que não escuta bem, que estava visitando São Paulo e decidiu em cima da hora ir ao Teatro Municipal, com a esposa e a filha, para assistir a um concerto.
Como o teatro já estava quase cheio, tiveram que comprar ingressos em cadeiras separadas. A filha e a esposa sentaram-se juntas, mas ele, embora na mesma fila, ficou a umas 10 pessoas de distância.
No meio da execução, o relógio dele começou a apitar, programado que estava para lembrá-lo de alguma coisa, e que ele tinha esquecido de desativar.
Mas, com a orquestra tocando, somada à sua pouca audição, ele não ouviu o som.
Na sala do Municipal, ecoava aquele som irritante:
– Pin, Pin, Pin…
Desesperadas, a esposa e a filha procuravam alertá-lo com gestos.
– Pin, Pin, Pin…
Até que, alertado por alguma das pessoas que estavam entre eles, olhou para o lado esquerdo e viu que a esposa acenava e apontava com o dedo indicador para o pulso da outra mão.
Ele compreendeu.
Ao menos, pensaram que sim.
– Ele colocou as mãos, como concha, em torno da boca e sussurrou, alto para ela (e boa parte do público e talvez dos músicos) ouvir:
– Noooovee e meiaaaa……
Todo mundo reclamou…
*
Há pouco eu estava em um café no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Enquanto eu escrevia o esboço desta crônica, um rapaz, que almoçava com o telefone celular sobre a mesa, conversava pelo viva-voz.
Dava para ouvir cada palavra. Dele e do interlocutor. Coisas assim acontecem cada vez mais também nos restaurantes, bares, cafés, padocas, no metrô. Provavelmente também nas bibliotecas.
Gente assim é pior que os sussurradores. Os primeiros, ao menos, compreendem que é inadequado falar alto e tentam respeitar os outros. É que os coitados não fizeram um curso de “como sussurrar” nem tiveram a oportunidade de assistir a tutoriais sobre o tema. Já quem fala alto, pelo viva-voz e obriga a gente a ouvir a conversa inteira dele e da pessoa que está do outro lado da linha, é grosseiro e muito mal-educado.
Mas – como a gente tem contradições, né? – fiquei com vontade de agradecê-lo antes de sair do café. Afinal, foi graças a ele que lembrei de tudo isso e tive a ideia de escrever esta crônica…
Foto da Capa: Freepik
Todos os textos de Airton Gontow estão AQUI.