Era uma vez uma menina. Ela nasceu em uma família tradicional e rica. Tinha um irmão menor. Os pais haviam se conhecido na universidade e estavam juntos desde então. Na noite de 31 de outubro de 2002 eles foram mortos dentro de casa. As crianças ficaram órfãs. Fim.
Não, este não foi o final desta história. As mortes de Manfred Albert von Richthofen e Marísia von Richthofen deram início a um dos casos de assassinato mais marcantes e midiáticos do Brasil.
Três condenados: Suzane, filha do casal assassinado a pauladas, Daniel Cravinhos, namorado dela, e Cristian, irmão de Daniel.
O que veio a partir do momento em que confessaram os crimes todo mundo já sabe. Se não, basta dar um “Google” e terá material para horas e horas de leitura. Fala-se sobre tudo. Desde o ocorrido propriamente dito, a passar por teorias de abusos, questionamentos sobre a índole das vítimas, jogos de culpa entre os envolvidos, artimanhas da acusação e defesa, laudos psiquiátricos, e até a simpatia de quem tenha visto um certo romantismo que pudesse justificar o crime. Ela uma menina inocente, ele um rapaz já bem rodado. Os pais não concordavam com o namoro e eles “por amor” decidem matá-los para poder viver felizes para sempre.
Nos contos de fadas que conhecemos, entre o “era uma vez” e o “felizes para sempre”, tem uma narrativa envolvente que pretende oferecer uma lição de vida. Essa é a teoria apresentada no livro Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. Foi um livro que li há muitos anos e me marcou. Quando comecei a pensar na crônica desta semana, esse livro me veio à mente e foi o fio condutor para (re)contar esta história: um conto de fadas desconstruído que mistura a Chapeuzinho que vira Lobo Mau, os três porquinhos que invadem uma casa e uma Sherazade manipuladora.
Não consigo ficar indiferente e nem manter distanciamento em relação a Suzane Richthofen. A menina que ama demais, mas não soube amar os próprios pais. Todos os amores que coleciona, para mim são pura conveniência.
Daniel Cravinhos, o primeiro amor, executou o plano de Suzane. Sandra Regina Ruiz, condenada por sequestro e morte de um adolescente de 14 anos, era uma espécie de líder na penitenciária feminina. Com o relacionamento entre as duas, Suzane passou a ter não somente proteção, como poder na prisão. Algum tempo depois do fim do romance com Sandrão, amou Rogério Olberg, irmão de uma outra presidiária. Os encontros aconteciam fora da prisão. Era a casa para onde podia ir quando passou a se beneficiar das saídas temporárias. No início deste ano, depois de 20 anos presa, passou a cumprir o restante da pena de 39 anos em regime aberto. Livre das grades e do último relacionamento, estava pronta para amar de novo.
Felipe Zecchini Muniz é o namorado da vez e será o pai da filha que Suzane está esperando. De bônus ganhou também três outras filhas do primeiro casamento de Felipe, que tem a guarda das crianças. Moram todos juntos.
A mãe das meninas, a médica Sílvia Constantino Franco, declarou na semana passada em um programa de TV que vai brigar na Justiça para retomar a guarda das filhas.
Imagino a razão.
Desde um instinto de proteção em relação às crianças envolvidas, que não consigo evitar, a um sentimento de indignação ao imaginar a normalidade na qual Richthofen vai viver a sua vida, este caso me traz um profundo e incômodo conflito.
Por um lado me pergunto se estou errada em condenar Suzane outra vez por não aceitar a sua reinserção na sociedade. Por outro, meu pressentimento mais primitivo de mãe e filha não me deixam acreditar que tenha se reabilitado.
O fato é que o nosso compasso moral e o nosso sistema de justiça nem sempre seguem as mesmas regras, criando muitas vezes lacunas que despertam a nossa dissonância cognitiva. É assim que me sinto, em um estado psicologicamente desconfortável em relação a tudo isso. Juridicamente ela está completamente amparada e pronta para recomeçar. Na minha cabeça não, confesso.
Podem me condenar.