Quando, no inverno de 1994, houve uma intensa nevasca no Sul, e chegou a nevar em Porto Alegre, o Luiz Fernando Veríssimo confessou que tinha um sonho de rolar na neve com a Catherine Deneuve. E nesse dia exatamente, quando uma rara neve caiu em Porto Alegre, a Catherine Deneuve estava na cidade! Ele chegou a pensar em contar seu sonho para ela, mas depois chegou à conclusão de que, na idade deles, na época já cinquentões, talvez não fosse recomendado. Poderiam pegar uma gripe, ou coisa assim. Melhor não1.
Pois nem sempre o frio é tão romântico, e muita gente fica incomodada e até doente por causa dele. Em parte, por isso, toda vez que ocorre uma onda de frio mais intenso, seja no Brasil, seja no Hemisfério Norte, inevitavelmente vem junto a pergunta: se o planeta está aquecendo, por que continua fazendo tanto frio? Aliás, esse é um dos questionamentos favoritos dos negacionistas climáticos, sempre ávidos na busca de argumentos para suas crenças anticientíficas.
Ainda assim, é uma pergunta razoável, principalmente em dias como os da semana passada, quando meio Brasil ficou tremendo de frio. Afinal de contas, os cientistas vêm alertando de forma cada vez mais enfática sobre os perigos do aquecimento global e por isso muitos esperavam que pelo menos o frio desse uma trégua.
Para responder essa questão a primeira coisa que devemos lembrar, como já ressaltei em uma coluna anterior, que tempo é diferente de clima. Tempo são as variações meteorológicas de curto prazo, clima são as tendências de longo prazo. Mesmo num planeta mais quente haverá dias frios. Mas a questão é: as ondas de frio ficarão mais intensas, assim como os outros eventos climáticos estão ficando?
Os cientistas ainda estão coletando dados e utilizando modelos climáticos para tentar responder a isso. Os dados até agora indicam que as temperaturas médias do inverno estão ficando mais altas, como seria esperado em um planeta mais quente. Por outro lado, há vários exemplos recentes de ondas de frio extremamente intensas, como a que ocorreu na América do Norte no início do ano, e no sul do Brasil agora. Essa é uma tendência que vêm sendo detectada ao longo das últimas décadas.
Os cientistas climáticos ainda não afirmam que é um padrão que vai permanecer. E eles tem razão em serem cautelosos. Os cientistas não podem afirmar coisas para as quais as evidências ainda são incompletas. Mas, como eu tenho aqui a liberdade de ser um tanto mais especulativo, posso sugerir que essa tendência reflete uma mudança de padrão permanente. Ou seja, invernos em média mais quentes, com frentes frias menos frequentes, mas muito intensas.
Há algumas observações e hipóteses para explicar isso. Invernos em média mais quentes são fáceis de explicar, pois tanto a atmosfera como as águas dos oceanos estão aquecendo, o que justifica também a maior intensidade dos furacões e outras tempestades tropicais. Mas frente frias mais intensas requer uma explicação mais elaborada.
Para isso, precisamos rever e examinar as mudanças no comportamento de dois fenômenos que ocorrem nas regiões polares ou circumpolares que afetam o clima de todo o planeta: o SAM e o vórtice polar. Vou me referir aqui aos fenômenos que ocorrem na região antártica, mas ambos têm seus equivalentes no Ártico.
Um tal de SAM
SAM é a sigla em inglês para o Modulo Anular do Hemisfério Sul, também denominado de Oscilação Antártica (AAO na sigla em inglês).
É um fenômeno complexo, mas que, basicamente, descreve o posicionamento dos chamados “ventos de oeste”, mais conhecidos pela denominação em inglês: westerlies. Os westerlies são o contraponto nas regiões temperadas aos ventos alísios – que transportam o ar mais frio das regiões subtropicais para o Equador e são desviados para oeste devido a rotação da Terra (são os ventos que levam a umidade do Oceano Atlântico para a Amazônia).
O westerlies, por sua vez, transportam o ar quente das regiões subtropicais para as regiões temperadas e frias, e são desviados para leste pela rotação da Terra. São eles os responsáveis pela formação dos ciclones extratropicais que, por sua vez, “empurram” as frentes frias no sentido norte (no hemisfério sul).
A maior parte das frentes frias que atingem o Brasil se originam na região do Mar de Bellinghausen e do Mar de Amundsen, na costa oeste da Antártida e viajam por sobre a Patagônia Argentina antes de chegar ao Brasil. Por viajarem sobre o continente, vão aquecendo nessa trajetória.
Mas tem sido observado que, desde a década de 1990, devido à maior intensidade do SAM, uma parcela ainda menor, mas crescente, de frentes frias está se originando em outro local, o Mar de Weddell, que fica mais a Leste. As frentes originadas no Mar de Weddell trafegam sobre o Atlântico Sul, e não aquecem como as que que viajam sobre a Patagônia. Assim, essas frentes atingem diretamente o sul do Brasil vindas do oceano, e tendem a ser muito mais gélidas2.
As variações no SAM se dão em períodos que persistem por décadas ou séculos. Ou seja, essa recente mudança de padrão (intensificação) que, se ainda não pode ser diretamente ligada ao aquecimento global (embora a suspeita seja que sim), deve de qualquer forma permanecer por muito tempo. Por outro lado, há outro fenômeno que está diretamente vinculado ao fato atmosfera estar mais quente: as perturbações no vórtice polar.
O Vórtice Polar
O vórtice polar é um ciclone semipermanente de grande escala e alta altitude que se localiza no entorno de ambos os polos da Terra. Tem papel fundamental na circulação atmosférica, pois controla as correntes de jato (jet streams em inglês) polares ou circumpolares. As correntes de jato são ventos da alta atmosfera, desenvolvidos entre 6 e 14 km de altitude, que controlam a migração das massas de ar frio.
Os vórtices polares são relativamente estáveis e tem uma forma circular. Mas periodicamente são perturbados por massas de ar quente vindas nas regiões tropicais e temperadas, se deformam e provocam a mesma deformação nas correntes de jato. Ou seja, enquanto parte da massa de ar frio é “empurrada” no sentido dos polos, uma outra parte, para compensar esse deslocamento, desce levando ar muito frio para as regiões temperadas e tropicais.
O que está acontecendo é que, com a atmosfera mais quente, as massas de ar aquecido que se deslocam no sentido dos polos estão mais fortes, tornando mais frequente e, principalmente, mais intensas as perturbações do vórtice polar. Por isso ondas de frio severas estão ocorrendo não apesar, mas por causa do aquecimento global.
Prepare-se para o calor, mas deixe o casaco no guarda-roupa
O calor deve ser, sem dúvida, nossa maior preocupação relacionada com o aquecimento global. Ondas de calor perfazem quase 50% dos eventos extremos documentados nas últimas décadas e matam mais do que chuvas intensas e deslizamentos.
No entanto, ondas de frio vão continuar a ocorrer. Algumas até fora de época, devido aos efeitos combinados do fortalecimento do SAM a da perturbação dos vórtices polares. As mudanças no SAM ainda não são bem compreendidas, embora o evento atual, que está causando a mudança de posicionamento das frentes frias, tenha iniciado na mesma época (anos 1990) em que os demais eventos extremos (chuvas intensas, ondas de calor) começaram a se intensificar.
Por outro lado, a capacidade das massas de ar mais quente de causarem maiores perturbações nos vórtices polares parece já estar bem documentada, ainda que mais dados precisem ser coletados para que se obtenha um melhor entendimento e, consequentemente, previsão da ocorrência desse fenômeno.
Assim, para quem não gosta de frio, a má notícia é que as frentes frias vão continuar a ocorrer e provavelmente ficarão mais fortes. O consolo é que o inverno como um todo será mais ameno. E aos turistas, e aos que ainda sonham em rolar na neve com a pessoa amada, será reconfortante saber que poderão aproveitar por muitos anos o frio e a neve dos invernos do sul.
Notas:
1Eu li essa história há muito tempo, e posso ter mudado alguns detalhes. Mas que a história é verdadeira, isso eu posso garantir.
2Meu livro “Planeta Hostil”, que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, contém um capítulo específico apresentando os principais processos que controlam o clima da Terra e do Brasil, incluindo os efeitos das mudanças na dinâmica das regiões polares no clima de todo o mundo. O livro pode ser adquirido nas principais livrarias físicas do Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em livrarias online como a Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
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