Neste mês, completam-se 50 anos do golpe militar no Chile que terminou com Salvador Allende morto com uma bala na cabeça e com a hiena autoritária Augusto Pinochet pronta para implantar um dos regimes mais sangrentos do Continente (o que é dizer alguma coisa numa época em que a influência americana semeava ditadores corruptos e psicopatas pela América Latina). O Brasil já tinha naquela época quase 10 anos da sua própria ditadura militar, e a Argentina seguiria pelo mesmo caminho meros três anos depois, mas algo no Chile sempre contribuiu para fazer do país um símbolo. Aliás, esse foi o país em que a luta política teve uma inegável dimensão também de disputa pela narrativa simbólica.
A queda de Allende carregava um peso inegável por ser o fim da primeira experiência abertamente socialista em larga escala eleita pelo voto na América Latina. Símbolo de uma ascensão política possível dos projetos de reforma e justiça social da esquerda do continente, o Chile foi gradativamente sendo apropriado pela ascensão de Pinochet e a aplicação entusiasmada do receituário padrão das ditaduras da direita do período (supressão de liberdades, assassinatos de dissidentes, aplicação de modelos econômicos inspirados pelos interesses econômicos internacionais, em especiais os norte-americanos) ajudaria a sequestrar o próprio Chile como um símbolo, ao ponto de, a partir dos anos 1990, começar a circular um consenso até mesmo entre o jornalismo econômico, essa casinha de cachorro da mansão neoliberal, de que o Chile era o “exemplo” de reformas e de condução econômica que o Brasil e outras nações do continente deveriam adotar (sem nunca atentar para o preço que essas reformas custaram). Essa posição do Chile como uma espécie de “país-modelo” na condução da economia segue inalterada até hoje.
Sendo o simbólico uma das ferramentas da literatura, não é surpresa que o Chile como cenário e o golpe contra Allende como fato catalisador ocupem espaço tão amplo em um dos melhores romances já escritos sobre ditaduras e luta armada na América Latina: O Amor de Pedro por João, escrito pelo ora patrono da próxima Feira do Livro Tabajara Ruas.
O livro
O Amor de Pedro por João foi o segundo romance publicado por Tabajara Ruas, em 1982. Assim como seu livro de estreia, A Região Submersa, um “noir” desobediente que inicia como um policial e se torna no decurso da trama uma sátira carnavalizada (hoje talvez dissessem “pós-moderna”) à ditadura brasileira ainda em pleno vigor, foi um romance escrito enquanto o autor morava na Dinamarca, como um dos exilados que ele retrataria no livro. Trabalhava como lavador de vidraças em um hospital das seis da manhã às duas da tarde e no restante do tempo escrevia. Como disse o próprio Tabajara a este colunista numa entrevista sobre sua obra realizada há 10 anos, em 2013:
“É um livro de ficção, embora baseado na minha experiência pessoal. As pessoas que estão ali, algumas eu conheci. Algumas das histórias me foram contadas, outras eu testemunhei de longe, mas, de certa maneira, é um testemunho daquela época. E me consola que os meus camaradas da época até hoje consideram o livro uma obra séria sobre a experiência que a gente viveu, de enfrentar uma ditadura, de padecer o exílio, circular pelo mundo sem documento. E pelo menos essa turma que viveu isso aí sempre me fala do livro com respeito, até com afeto, o que me deixa muito contente.”
É um acerto de contas de Tabajara Ruas com as ilusões, as ingenuidades e os fracassos de sua geração. Apropriando-se com ganas da vibrante corrente experimental que corria na literatura brasileira do período, é um romance que se constrói de uma forma enganosamente caótica – e ao mesmo tempo em que se apropria de elementos usados por gêneros de consumo popular, como o thriller e a narrativa de espionagem, promove a crítica de seus modelos na forma mesmo como estrutura a narrativa – entrecortada, misturando espaços e cronologias com uma linguagem de corte, elipse e montagem que deve muito ao próprio cinema (não foi por acaso que nos anos seguintes o escritor enveredou ele próprio pela direção cinematográfica).
Os personagens
O Amor de Pedro por João enfoca em momentos diferentes no tempo um conjunto de personagens imersos cada um a seu modo na luta contra a ditadura. A cena de abertura mostra Marcelo, um dos protagonistas, encontrando asilo na embaixada da Argentina, um dos pontos onde exilados, dissidentes e lideranças de esquerda buscaram refúgio enquanto as tropas de Pinochet acampavam do lado de fora. A partir daí, a narrativa se desdobra no tempo e na geografia para apresentar seus outros personagens, maioria também vivendo no Chile de Allende logo antes do golpe. Dignos de nota são Hermes, ex-colega de Marcelo na faculdade de Arquitetura da UFRGS nos anos 1960. Mara, musa fascinante que foi namorada de Hermes e hoje vive com Marcelo no Chile. Dorival, sindicalista, e sua companheira, Ana, acossados pela eclosão do golpe. Na embaixada, Marcelo encontrará também Sepé, militante comunista filho de Josias, preso político que, no Brasil, está sendo posto em liberdade na mesma semana que o governo de Allende cai. Ao contrário dos rapazes universitários que enveredaram pela militância, Sepé e Dorival são proletários com consciência de classe – o que faz com que inadvertidamente sejam, até mesmo sem saber, alguns dos mais impactados pelas ações da resistência e pelos preconceitos velados que também grassam mesmo no interior do movimento.
Além do racismo cotidiano que limita suas possibilidades de fuga, Dorival já esteve preso no Brasil, e seu comportamento irredento na cadeia o tornou uma figura mitológica – foi, aliás, baseado no trecho em que Dorival relata finalmente o episódio várias vezes mencionado ao longo do livro, que Jorge Furtado filmou em 1986 o premiado curta O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, com Zé Adão Barbosa, Sirmar Antunes e João Acaiabe – este último vivendo o próprio Dorival.
Sepé, por seu lado, é uma figura ambígua sobre quem paira uma aura de desconfiança, dado seu papel em um episódio ocorrido dois anos antes e que também é uma das principais narrativas do livro. Sepé foi encarregado de encontrar, viajando por terra, um antigo e valoroso quadro comunista, João Guiné – exilado também no Chile, Guiné decide reassumir papel na luta armada voltando ao Brasil clandestino. Sepé parte do Nordeste para encontrar Guiné, que entrou no país pelo Sul – e os percalços da jornada também são narrados ao longo de todo o romance.
A linguagem
Como se vê, a simples tentativa de uma sinopse já é um esforço. Ainda assim, lidando com um número alto de personagens, tramas e tempos, Tabajara Ruas ainda consegue orquestrar as narrativas paralelas para que alcancem seu ponto climático todas no fim do livro, quando o suspense construído ao longo das 400 páginas anteriores explode em fascinantes momentos de ação, tensão, violência, sacrifícios heroicos, traições patéticas e vinganças melancólicas. Há ainda, para além desse domínio da trama, uma série de elementos formais que tornam este um dos grandes romances brasileiros dos últimos 50 anos, embora lamentavelmente pouco conhecido em escala nacional. É um livro que põe em uso técnicas experimentais para produzir, na prosa, efeitos dinâmicos e imagéticos.
Quando se fala de um romance com narrativa “cinematográfica”, na maioria das vezes está-se aludindo a best-sellers escritos para que a leitura flua sem percalços e em que as cenas são ou aceleradas ou muito visuais, mas a linguagem desse tipo de livro costuma ser banal, engessada, simplória, até. O Amor de Pedro por João é um livro cinematográfico porque tenta reproduzir elementos do cinema tornando mais exigente sua linguagem. Aparece já ali um dos recursos a que o autor voltaria de modo muito consistente: a manipulação do tempo por meio da prosa, estendendo a narração de um momento ou ação que se desenrolam rapidamente por meio da contraposição do que está ocorrendo com o que se passa no íntimo dos personagens. Exemplar nesse sentido neste livro em especial é a cena da primeira relação entre Marcelo e Mara, numa casa de praia, momento que para o jovem equivale a uma experiência mística, e portanto a descrição do ato em si, com quem fez o quê ou pôs a mão aonde, é entremeada com um a paródia do Gênesis.
Alguns elementos não realistas e metafóricos também voltam com a recorrência de um leitmotiv. Impetuoso e com fama de valente, João Guiné é um homem que oculta dentro de si um medo gigantesco que desperta durante as ações e os momentos de perigo dando a ele a sensação recorrente de ter um feto germinando em sua barriga. Essa imagem, a bem dizer, não deixa de ser uma variação de outra que Tabajara já havia usado no anterior A Região Submersa, em que o protagonista, o detetive Cid Espigão, é várias vezes acossado em situações de pânico pela sensação de que está com um espinho pronto a irromper das tripas, furando a barriga e espalhando sangue, merda e vísceras para todo lado.
Vórtice
Comparar O Amor de Pedro por João a uma espécie de romance-vórtice não me parece incorreto, não apenas pela força caleidoscópica com que a sucessão de acontecimentos arrasta o leitor em suas página Há uma energia maníaca na forma como às vezes a narrativa gira em momentos cruciais, ralentando o tempo e o ritmo. Como Tabajara comentou sobre esses elementos formais na entrevista que eu já mencionei:
“Aquela coisa multifacetada tinha muito a ver com a nossa vida, a vida dos personagens que estão naquela narrativa, as coisas aconteciam muito rapidamente, muito de surpresa. Acho que o livro naturalmente foi tomando aquela forma.”
A narrativa também é um vórtice pela forma como se desenrola em espiral para o passado e o futuro. Tanto os anos de formação de Marcelo e Henrique nos anos 1960 nos bancos universitários como a organização da comunidade de expatriados enquanto aguardam a resolução do impasse entre o governo golpista do Chile e a secretaria da embaixada argentina. Tanto o entusiasmo crescente pelos ideais de transformação dos anos 1960 quanto a melancolia da derrota na resistência armada. A ideia de como manter a própria identidade e um rasgo de esperança em ação após uma derrota amarga seria algo a que o próprio Tabajara voltaria em seu romance seguinte, o épico Os Varões Assinalados, que transforma em romance a história da Revolução Farroupilha, e na novela Netto Perde sua Alma, sobre o exílio do general Netto no Uruguai após o fim de revolução.
Em O Amor de Pedro por João, essa espiral narrativa tem um centro claro, simbólico e definidor do trauma de toda aquela geração: o golpe contra Allende no Chile, em 1973.
Cinquenta anos depois do golpe, e quase três décadas depois de Tabajara haver lançado seu romance-testemunho no calor dos rescaldos, O Amor de Pedro por João continua criminosamente pouco conhecido.