Não adianta buscar o conceito de TDAuH no Google, praticamente inexistem menções ao tema em português. Talvez uma busca por AuDHD, a sigla em inglês, renda mais frutos. Nessa pesquisa, você deverá encontrar a palestra TEDx de Khurram Sadiq, um psiquiatra britânico especializado em neurodesenvolvimento. Outro resultado da consulta será uma matéria do jornal londrino The Guardian que fala da ascensão desse conceito, qualificando-o como um diagnóstico que pode mudar a vida de quem o recebe.
Mas o que é TDAuH ou AuDHD? Esse é um conceito que combina autismo e TDAH e que vem recebendo atenção. Desde já aviso que a medicina ainda não o trata como um diagnóstico oficial, mas é um conceito que vem sendo utilizado para chamar a atenção para a coexistência de ambas as condições e que as pessoas TDAuH têm necessidades e características distintas daquelas que são somente autistas ou somente TDAH.
Durante muito tempo, a psiquiatria acreditava que o autismo e o TDAH eram condições excludentes, ou seja, uma pessoa poderia ser diagnosticada apenas com uma delas. Essa perspectiva mudou recentemente, com a introdução do DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) em 2013. A nova abordagem se fundamentou em estudos genéticos, epidemiológicos e de neuroimagem que demonstraram a possibilidade de sobreposição entre as duas condições.
Dr. Khurram Sadiq (foto da capa), médico que vive essa condição, vai além. Ele destaca que a coexistência de autismo e TDAH não é apenas possível, mas comum. Pesquisas recentes têm indicado isso, como conta a Dra. Raquel Del Monde, médica especialista na matéria, ao dizer que TDAH e TEA “são condições que frequentemente coexistem, de tal maneira que encontramos sinais de TDAH em até 80% das pessoas no espectro.”
Como ela explica, o autismo e o TDAH são transtornos do neurodesenvolvimento com uma forte base genética que impactam o comportamento, o aprendizado e a socialização de maneiras distintas, mesmo em casos considerados “leves” de autismo. Ambas as condições compartilham dificuldades em compreender linguagem não verbal, com habilidades sociais, regulação emocional e atenção, além de maneiras diferentes de perceber sentidos e sensações. Também apresentam comportamentos opositores, o que leva muitas vezes a que crianças com essas condições sejam vistas como birrentas e, na vida adulta, como pessoas briguentas ou temperamentais.
A Dra. Raquel salienta que as semelhanças ou a sutilidade das diferenças fazem com que “frequentemente, autistas que não apresentam maiores dificuldades no uso da linguagem ou manifestações mais características do autismo (…) são diagnosticados com TDAH num primeiro momento.”
Tudo isso faz com que a jornada até um diagnóstico correto muitas vezes seja lenta e difícil, repleta de mal-entendidos e diagnósticos errados. Muitas vezes, os erros na avaliação e identificação dos sintomas decorrem da falta de formação adequada dos examinadores. Porém, em outras, o prejuízo decorre da estigmatização de condições neuro atípicas e da falsa percepção de que esses diagnósticos são “modismos”. Afinal, médicos são seres humanos e também estão sujeitos a fake news, mistificações e teorias conspiratórias.
Mas, por que TDAuH? Por que mais um “rótulo”? Primeiro, para sensibilizar e conscientizar acerca dessa nova compreensão que desafiou percepções anteriores. Esse movimento levou ao surgimento de grupos de apoio online, onde muitas pessoas com a condição começaram a compartilhar suas experiências.
O reconhecimento do TDAuH tem proporcionado um espaço para que os indivíduos explorem as complexidades de viver com essas condições e nos força a ver que elas existem. Às vezes, o autismo e o TDAH entram em conflito, enquanto em outras situações podem ser complementares. Segundo Sadiq, não existe uma divisão exata entre as duas condições; o cérebro frequentemente oscila entre elas. Isso faz do TDAuH uma condição única, completamente diferente do TDAH ou do autismo considerados individualmente. Mattia Maurée, pessoa não binária, descobriu o conceito de TDAuH ao perceber que as orientações sobre autismo e TDAH não funcionavam ao aplicá-las à sua vida.
Em muitos casos, a criatividade é frequentemente mencionada como a característica mais positiva do TDAuH, com muitos reconhecendo como os traços do TDAH e do autismo se complementam. A youtuber Samantha Stein, ouvida na citada matéria do The Guardian, observa que o TDAH proporciona uma paixão por novidades e criatividade, enquanto o autismo permite um foco intenso em seus tópicos de interesse.
Eu não sou médico nem profissional da saúde. Sempre que escrevo sobre neurodiversidade, o faço na condição de uma pessoa com TDAH e pai de um autista, ou melhor, de um adulto TDAuH. A minha experiência cotidiana me traz mostras da dor e delícia de sermos quem somos, com uma pessoa TDAH e uma TDAuH convivendo com duas pessoas neurotípicas (e três cachorros vira-latas).
Costuma-se dizer que a vida com TDAH é cheia de paradoxos ou contradições. Gostamos e precisamos de ordem e de ambientes arrumados para o nosso bem-estar, mas somos bagunceiros profissionais. Precisamos de rotina, mas detestamos organizar ou somos contaminados pelo tédio ao fazermos coisas repetitivas. Falamos pelos cotovelos, mas podemos nos distrair facilmente quando ouvimos os outros. Estamos quase sempre atrasados, mas detestamos esperar os outros.
Esses paradoxos e contradições parecem explodir em muitos casos de interseção do autismo e do TDAH, sendo multiplicadas de forma exponencial. Na sua palestra TED, com o sugestivo nome “Quando Ordem e Anarquia Vivem Juntas”, Sadiq explora as dualidades da condição TDAuH como silêncio versus barulho e estruturas rígidas versus caos. Outros falam em uma guerra interna entre ambas as condições, como a citada Samantha Stein, que questiona como sua personalidade pode ser tão paradoxal a ponto de necessitar de um dia-a-dia estruturado em rotinas rígidas ao mesmo tempo que se vê completamente incapaz de manter uma rotina rígida.
Assim como em outras questões de saúde mental, muitas pessoas com TDAuH relatam a experiência de receber o diagnóstico como libertadora, pois as ajuda a entender suas experiências passadas e projetar um futuro menos conflituoso consigo e com os demais. Especialmente os adultos diagnosticados tardiamente passam a entender melhor suas experiências, substituindo as ideias dominantes de fracasso e vergonha por uma visão mais tolerante e compreensiva com suas próprias atitudes.
Se estudos recentes mostram que indivíduos com TDAuH enfrentam riscos elevados de problemas de saúde mental, incluindo taxas de suicídio superiores à média da população, podemos dizer que um tratamento adequado que considere a singularidade dessas pessoas tem o poder de salvar vidas.
O crescimento da conscientização sobre o TDAuH, ainda que carente de formalização, representa não apenas uma mudança na forma como entendemos o autismo, o TDAH e suas interseções, mas também uma oportunidade de promover inclusão em sociedades que frequentemente rotulam e marginalizam as diferenças. Ao reconhecer a complexidade e as singularidades das experiências vividas por pessoas TDAuH, podemos trabalhar para desmistificar preconceitos e construir ambientes mais acolhedores e flexíveis. Somente assim, poderemos implementar políticas públicas mais eficazes, realizar as adaptações necessárias no ensino e no trabalho, preservar a saúde mental dessas pessoas e de suas famílias. Não basta salvar vidas, é preciso transformá-las com acolhimento e inclusão.
Foto da Capa: Dr. Khurram Sadiq / TDEx / Reprodução do Youtube
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