“Não-lugar”, um termo criado em 1992, pelo etnólogo e antropólogo francês Marc Augé (1935-2023). Refere-se a lugares transitórios, que não possuem suficiência para serem considerados “um lugar”. Pode ser uma esquina qualquer, um banco de praça, um shopping, um albergue ou um hotel, a rodoviária ou o aeroporto. Contrapõe-se àquilo que se entende como um “lugar antropológico”.
“Lugares” doam-se como espaço de identidade, no qual se pode conhecer e interagir com pessoas com quem compartilhamos referências. Os não-lugares, ao contrário, não são palco de reuniões e não constroem referências comuns para um determinado grupo.
O não-lugar, para Augé, seria um lugar em que não se vive, apenas estamos, muitas vezes de passagem ou por alguma contingência, anônimos e solitários. Produto do que ele chama “super modernidade”.
Pode-se entender o “não-lugar” também como um conceito que se relaciona com o exílio, quando se tem que deixar a própria terra natal.
Tento dar um sentido a esse preâmbulo, motivado por um outro termo que me faz pensar: “Terra Sem Mapa”.
Mirna Spritzer e Sergio Lulkin foram colegas no Departamento de Arte Dramática da UFRGS (DAD). Eles trabalharam juntos muitas vezes, em peças de teatro e filmes emblemáticos do nosso acervo histórico-cultural. Acho que os aplaudi, pela primeira vez, em 1978. Éramos todos “guris”, e o palco um respiro num tempo de abafamentos. “O Casamento do Pequeno Burguês”, de Bertolt Brecht, apresentava-nos uma geração de grandes e corajosos atores. Dirigido por Irene Brietzke, que numa passagem tão prazerosa quanto surreal (para quem sente pudor até para tocar campainha), tive como colega no Conselho Deliberativo da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA). Mas isso é outra história.
Pois bem, Mirna e Sergio se reencontram. Num período que também pode ser classificado como sufocante. Aproveitando esses conceitos que empurram a crônica, ouso chamar de um “não-tempo”. A pandemia.
Distantes das salas de teatro, trocaram ideias, testes de falas e imaginaram cenas, em literal virtualidade e salutar espaçamento. Em tempo de máscaras, desenharam dois personagens de caras limpas. Reais, marcantes. E belos. Luba e Vrum.
Pode-se estar ao lado e estar só. Mas nem Deus, só, sentiu-se pleno. O diabo é mais do que um contraponto. É razão para a existência. Nessa arca em fuga do dilúvio, necessita-se de companhia. Pelo menos formar um par. Luba e Vrum já estão na fila. Onde também avisto Ginger e Fred, Romeu e Julieta, Vladimir e Estragon, Abelardo e Heloísa, Quixote e Sancho, Abbott e Costello, Tom e Jerry, Batman e Robin, Sá e Guarabyra, Platero y Yo, Alvarenga e Ranchinho, Cascatinha e Inhana e por aí vai. Pares que se tornam ímpares. Vrum e Luba recebem o abraço de Hardy e Laurel, o Gordo e o Magro.
A exceção para essa regra do número pareado talvez seja Chaplin. Mas ele não existe sem o que ele nos provoca, a certeza de estarmos juntos no caminho aberto ao horizonte.
O título desse encontro, criado, dirigido e dramatizado por Mirna Spritzer e Sergio Lulkin, é Terra Sem Mapa. Vem do nome de um livro, do escritor uruguaio Ángel Rama. Publicado em 1959, a obra recria histórias da mãe do autor, ainda menina, na Galícia do início do século XX. Uma delicada tecitura entre memória e ficção, razão e sentimento. Ángel Rama, que morreu num acidente aéreo em 1983, trabalhava muito a transculturação, a transformação cultural que resulta do contato entre diferenças.
Para Rama, a memória é uma terra sem mapa. Luba e Vrum habitam essa terra. Um espaço que pode ser qualquer espaço, um tempo que pode ser qualquer tempo. Mas nunca um não-tempo, um não-espaço. Eles contam histórias, tramas e dramas, lembranças, aventuras. Partilham e compartilham esperanças. Com delicadeza, humor, poesia. Sobre gente que partiu, que tem que partir, que chega e precisa refazer suas casas, suas vidas, seus laços e lugares.
Numa cidade, num país de descendentes de imigrantes e de novas e penosas migrações, exílios forçados, portos de chegada nem sempre acolhedores, não há como não se sentir parte desse espetáculo. Alguns diálogos, comentários, expressões, trechos de canções em alemão, em iídiche – essa língua que para mim é o esperanto verdadeiro, mescla de bagagens e sonhos – mais do que referência local, despertam a universalidade de uma cantiga de ninar. Histórias de família, lendas, fotografias antigas, cartas que poderiam ser dos nossos avós, tios, pais…
Ao chegar em casa, voltando do teatro, anotei: “A memória é terra sem mapa, sem contorno, sem fronteira. E, no entanto, ela existe.”
No porto, espaço, palco, Luba Spritzer e Vrum Lulkin nos convidam a inventariar o que podemos levar na bagagem. Parece pouco. Mas é o imprescindível. Memória e afeto. Em meio a diásporas constantes, é o que nos faz gente. Na escuridão, luzes da ribalta sabem a uma galáxia de estrelas. Qualquer porto pode ser alegre se tivermos com quem dançar. Terra Sem Mapa é a prova de que o teatro definitivamente não é um não-lugar.
Nota do Autor:
Numa sintonia de impulsos de recomendação, imposta pelo sentimento de prazer vivenciado, nessa mesma semana, Lelei Teixeira também festeja na Sler a volta de Terra Sem Mapa aos palcos. De 3 de abril a 15 de Maio, sempre às quintas-feiras, às 20 h, no Estúdio Stravaganza. E porque não se faz nada só, segue a Ficha Técnica. TERRA SEM MAPA. Com Mirna Spritzer e Sergio Lulkin. Criação, Dramaturgia e Direção: Mirna Spritzer e Sergio Lulkin. Colaboração Artística: Carlos Mödinger. Figurino: Rô Cortinhas. Iluminação: Ricardo Vivian. Operação de luz: Ricardo Vivian e Fabi Santos. Trilha sonora original: Gustavo Finkler. Operação de som: Luiz Manoel e Pati de La Rocha. Identidade Visual: Leandro Selister. Fotografia: Adriana Marchiori. Assessoria de imprensa: Bruna Paulin – Assessoria de Flor em Flor. Mídias Sociais: Renata Stein. Produção: Mirna Spritzer, Renata Stein e Sergio Lulkin.
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Foto da Capa: Arte de Leandro Selistre