Começar pelo óbvio em tempos como este é mais que recomendável: você é do tipo de pessoa que associa tecnologia imediatamente a digital, computacional? Fique calmo, esta é a narrativa dominante criada no imaginário de todos nos últimos tempos. Mas agora te convido a voltar com sua imaginação em filmes ou referências do passado, onde são apresentadas as engenhocas como: luz, balão, avião. Neste momento a tecnologia era associada à engenharia. E eu poderia ir contando no tempo até chegar na descoberta do fogo, que é considerada uma das primeiras tecnologias humanas.
Mas se você olhar o fundamento de tudo é a criatividade humana desenvolvendo soluções para problemas e questões humanos: como viver melhor, ou como atravessar o oceano, ou como curar uma doença. Antes de serem enquadradas sob o termo tecnologia eram chamadas de invenções, e mais tarde inovações. Mas porque estou falando isto? Porque neste território existem as tecnologias sociais. Tecnologias que resgatam práticas ancestrais através de saberes que deram conta de muitos desafios humanos severos e permitiram que soluções fossem criadas e implementadas. Geralmente, elas são o caminho oposto da tecnologia utilizada pela indústria e seu sexy appeal digital consumista que seduz a todos nós.
Mas afinal o que são as tecnologias sociais? O conceito de tecnologia social se iniciou nos anos 80 como tecnologia apropriada, e hoje são a base dos Objetivos do Milênio (ODM) da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas vamos ao conceito formal: “tecnologia social é um conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população considerando seus saberes populares cruzados com os científicos para gerar soluções de inclusão social e melhorias de condições de vida”. O foco da tecnologia social é o desenvolvimento sustentável a partir de fatores importantes como protagonismo social, cuidado ambiental, solidariedade econômica, respeito cultural, trabalho e renda e educação. (Guia Sebrae, Tecnologia Social). Mas e como esta vertente pode funcionar em tempo de emergência climática? É a pergunta que tenho me feito todos os dias, a partir do maior desastre climático e seus impactos que estamos vivendo aqui no Rio Grande do Sul.
Desde o dia que foi decretado estado de calamidade pública no RS, eu entrei em ação, pois meu senso de prontidão é imediato. Mas porque ele é imediato? Porque venho de uma camada da população que é exposta a todo tipo de desastre e tragédia possível, como efeito da exclusão social que impera no Brasil. Deslizes de morros, enchentes, áreas inundadas. A enchente que a classe média viveu agora e sentiu na pele e em suas casas atinge a população das ilhas de forma crônicas todos os anos, e nunca virou prioridade pública, mas virou filme cult e cheio de prêmios – o Ilha das Flores, de Jorge Furtado – ao retratar a tragédia vivida por esta população da cidade de Porto Alegre.
Mas vamos voltar às tecnologias sociais neste cenário atual, pois elas serão vitais em tempos de emergência climática, que como disse outro colunista da Sler, Marcos Bliacheris, serão o novo normal. Sim, teremos que pensar em como em uma sociedade altamente meditiazada e digital pode utilizar saberes ancestrais para a redução de danos, mitigação, vivência de crises, recuperação de impactos e articulação da vida antes, durante e depois dos eventos climáticos. E a resposta está nas sabedorias ancestrais cruzadas com a tecnologia que temos neste momento de hiperciclo e transição.
Vamos a um exemplo
O desastre climático aqui no RS deixou mais de 600 mil pessoas desabrigadas, este é o numero das que estão sem casas e fora de abrigos. Onde estão estas pessoas? Já pensou que foram acolhidas por parentes e amigos? Esta é uma prática ancestral chamada de aquilombamento. Era utilizada pelos escravos africanos em suas fugas em busca de liberdade. E se reconfigura até hoje por seus descendentes no Brasil. Como considerar esta prática uma tecnologia para mitigação de eventos climáticos? Como preparar estas pessoas dispostas ao acolhimento e dar condições a elas para que recebam as pessoas em caso de desastre evitando os abrigos improvisados e cheios de problemas? Aí entra o papel de criar uma solução, por exemplo, onde o digital e o apoio governamental deve incidir e ter uma diretriz clara. Isto seria uma inovação social relevante e estratégica para momentos de crise.
E, assim, eu poderia citar muitas e muitas questões que fui pensando ao vivenciar na linha de frente o apoio no resgate das vitimas. Desde de mapeamento de riscos e sinalização para evacuação, segurança alimentar, manejo de saúde, preparação para evacuação. Vivemos um grande experimento do caos por despreparação TOTAL e negacionismo. E o pós? Adianta voltar para ás áreas inundadas? Minha tia e primos, por exemplo, moradores de Eldorado do Sul, em 6 meses tiveram suas casas inundadas duas vezes. É um a impacto muito grave para estas populações que vêm sendo afetadas pelo nosso comodismo em ter coragem de abraçar a regeneração e não apenas a engenharia. Nem vou entrar na questão política que daria um livro todinho. Mas este artigo só tem um objetivo: buscar esclarecer o leitor que a tecnologia que precisamos é social e urgente. Por isto, me dispus a integrar o Maratona RS, iniciativa idealizado pela Afrohaya e diversos atores gaúchos, onde times multidisciplinares estão sendo formados para gerar Soluções para o desafio da emergência climática. E você ainda acha que não pertence ao território da tecnologia? Se você tem capacidade de criar este chamado é pra você também.
Foto da Capa: Tânia Rego | Agência Brasil
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