Lançado no Brasil em 2018 (data emblemática para a história política brasileira), O Rei das Sombras, livro do autor espanhol Javier Cercas (foto da capa), é um misto de romance, ensaio e biografia. Na obra, Cercas reconstitui a história de um parente, um tio de sua mãe, e lança uma interrogação capaz de ecoar na mente dos leitores brasileiros neste ano de 2022 (data ainda mais emblemática para o futuro da democracia no Brasil): como conciliar o afeto familiar e a personalidade muitas vezes agradável daquele familiar que, também, professa em alto e bom som os piores e mais antidemocráticos absurdos políticos. Em outras palavras: como lidar com o tio fascista que parecia tão gente boa?
O autor
Nascido na pequena cidade de Ibahernando, na Estremadura, em 1962, Javier Cercas consolidou seu nome nas últimas décadas como o grande cronista ficcional da história espanhola recente. Vários de seus livros apresentam novos e originais pontos de reflexão, normalmente numa cruza entre ficção e ensaio, sobre o longo e penoso processo de reconstrução do país após o trauma da ditadura de Francisco Franco. Formado em filologia e professor universitário, ele estreou na literatura em 1987 com El Móvil, uma coletânea de cinco narrativas de extensão média. Publicou outros dois livros com pouquíssima repercussão até que, em 2001, se tornou um dos autores mais discutidos da Espanha com a publicação do romance Soldados de Salamina, até hoje sua obra mais conhecida internacionalmente. É aí que Cercas já apresenta as características que serão sua maior força literária e o motivo de suas principais críticas: buscando uma abordagem complexa e longe do simplismo sobre a conciliação nacional, o romance narra a história de um personagem real, o escritor de extrema-direita Rafael Sanchez Mazas, um dos fundadores da Falange Espanhola, partidário de Franco, e que escapa de um fuzilamento ao fim da Guerra Civil. Em sua tentativa de fuga, ele encontra um soldado republicano e a tensão do romance se constrói no suspense se esse soldado vai ou não o entregar para uma nova execução. Ao mesmo tempo, como se tornaria padrão na obra de Cercas, o romance documenta sua própria construção, já que é narrado pelo ponto de vista de um escritor chamado Javier Cercas, pesquisando elementos para a reconstrução da história.
Adaptado para o cinema dois anos depois no premiado filme de mesmo nome dirigido por David Trueba, o romance foi responsável por turbinar uma nova onda de reflexões e obras sobre o trauma da Guerra Civil na Espanha. É também uma amostra condensada de como Cercas escreve seus romances: reconstruindo episódios reais com rigor histórico e, ao mesmo tempo, embaralhando as noções entre fato e ficção, algo que ele voltaria a fazer em obras como Anatomia de um Instante, sobre uma fracassada tentativa de golpe militar e retrocesso à ditadura ocorrida na Espanha em 1981, ou O Impostor, sobre o sindicalista catalão Enric Marco, que por anos mentiu ser um exilado antifranquista e um sobrevivente de campos de concentração nazistas.
O livro
Cercas publicou O Rei das Sombras originalmente em 2017. É um livro que, como o próprio escritor já admitiu em várias entrevistas, sempre quis escrever e para o qual todos os anteriores foram uma espécie de preparação. Na obra, a exemplo do que havia feito antes com Sanches Mazas e Enric Marco, Cercas reconstitui uma trajetória real abarcando seu aspecto simbólico na sangrenta história da Guerra Civil. O que torna este livro peculiar é que aqui o autor não está reconstituindo a vida de um estranho, mas a de um personagem com aura de lenda da própria família.
O Rei das Sombras recupera a história de Manuel Mena, um tio da mãe de Javier Cercas que morreu com a idade de 19 anos, em setembro de 1938, durante um dos mais sangrentos combates da Guerra Civil Espanhola, a Batalha do Ebro. Jovem, vivaz, inteligente, Mena foi durante muitas décadas uma espécie de mito particular para a família de Cercas, além de suposto herói local da pequena cidade de Ibahernando, onde nasceu, na Estremadura. Era uma espécie de ídolo de infância para a mãe do escritor e seu retrato vestindo um garboso uniforme militar foi sempre presente em espaços nobres da casa da família. Ainda assim, para Cercas, um homem com visão política identificada com esquerda, Mena era também símbolo da sua desconexão com a família, já que o parente amado por tantos lutou e morreu como parte das falanges que levariam ao poder um dos mais sanguinários ditadores do século XX, Francisco Franco.
O contexto
Talvez seja necessário, para seguir adiante, algumas poucas palavras de contexto. No início dos anos 1930, a Espanha, recentemente liberta da ditadura totalitária conservadora de Miguel Primo Rivera, vivenciou um breve período republicano em que foi eleito pelo voto um governo de esquerda, que se elegeu com um projeto de reformas moderadas que não foi aplicado com muita competência e terminou por polarizar a sociedade espanhola: à esquerda, vertentes ligadas ao anarquismo e ao comunismo achavam que o governo era por demais tímido em seus projetos. À direita, grupos conservadores como a Falange Espanhola defendiam a implantação de um modelo político conservador de direita, muitos defendendo até mesmo a restauração da monarquia, abolida pela sua cumplicidade com o regime ditatorial. Quando um segundo governo de esquerda se elegeu em 1936, a polarização explodiu e um golpe de estado foi dado pelos grupos de direita sob o pretexto, familiar para qualquer um a essa altura, de “impedir a queda do país nas mãos do comunismo”. A diferença com a groselha parecida que ainda se escuta hoje em dia é que na época havia um regime comunista de fato interessado nos acontecimentos, o de Stálin, na União Soviética.
Manuel Mena foi um dos jovens militantes da Falange Espanhola, que embora tenha sido um dos principais grupos de sustentação do golpe que desembocou na Guerra Civil, seria mais tarde engolida pelo programa do Movimento Nacional de Franco. Escrever, portanto, um livro sobre Manuel Mena seria também investigar as razões pelas quais não apenas ele, mas praticamente toda a família do escritor engajou-se no conflito espanhol no lado dos nacionalistas de extrema-direita, algo que Cercas evitou durante décadas – de certo modo, a história que o escritor contou em Soldados de Salamina foi a substituição possível na época.
Essas são questões que Cercas traz para dentro da própria estrutura de O Rei das Sombras. O livro se divide em duas narrativas que correm paralelas, uma delas a reconstituição da breve vida de Manuel Mena ligada ao aumento da instabilidade política na Espanha do período até a eclosão da guerra e a sua morte, após um ano de combate, oito ferimentos em batalha e uma promoção a tenente de um batalhão de artilharia responsável por canhões e morteiros. Fiel à ideia de tentar recuperar a história com rigor documental, Cercas, como já havia feito em outros livros, embasa sua prosa nesta primeira parte apenas no que pode provar em documentos ou testemunhos, e mesmo quando aparece na narrativa, fala-se de si na terceira pessoa. A segunda vertente da história é o relato que Cercas faz, em primeira pessoa, do processo de pesquisa e escrita para o livro, e de suas próprias dúvidas para abordar o material, inclusive suas inseguranças sobre como seu trabalho será recebido. Ele apresenta conversas com parentes, com amigos, como o diretor Trueba, que adaptou Soldados de Salamina e o acompanha a Ibahernando para filmar uma entrevista, com a própria impossibilidade de saber algumas coisas com certeza passado tanto tempo dos acontecimentos.
Virtudes e problemas
É um livro que, lido hoje em um Brasil mergulhado ele próprio na ascensão da extrema-direita, soa temerário e corajoso ao mesmo tempo. Claramente, ao voltar-se para essa figura de seu passado familiar, Cercas busca um olhar de conciliação às refregas que levaram à Guerra Civil espanhola – o que, se por um lado o leva a enxergar uma bem-vinda complexidade na situação, por vezes chega a resvalar na perigosa falácia dos “excessos dos dois lados” que conhecemos muito bem. Um dos motivos que levaram sua família a ser partidária dos conservadores, Cercas conclui e admite, é o fato de que tanto os Cercas quanto os Mena, os dois ramos de sua família, eram compostos por gente de algumas posses e bem posicionada na hierarquia social da comunidade de Ibahernando, e se sentiam eles próprios ameaçados pelas reformas que a república pretendia pôr em marcha. Cercas lamenta que essa autoproclamada “aristocracia campesina” não tenha enxergado que tinha com os camponeses mais pobres mais semelhanças do que diferenças, e que ambos tinham como inimigos comuns na verdade a igreja conservadora e a decadente nobreza que explorou a terra por séculos e insuflava o nacionalismo.
Ainda assim, esse viés inescapável talvez faça Cercas fechar os olhos para contradições impossíveis. Muitas mortes de dissidentes de esquerda foram registradas na cidade na época da guerra civil, algumas delas quando seus parentes eram os administradores do povoado, mas ele reluta em refletir sobre o quanto seus admirados parentes estavam envolvidos. Boa parte de seu olhar compassivo para Manuel Mena se dirige para o fato de que ele era absurdamente jovem e que, portanto, havia sido levado a morrer por uma causa à qual fora atraído, embora o próprio Cercas encontre a certa altura anotações de um discurso que Mena elaborou para uma solenidade que mostra que o jovem estava muito engajado na visão nacionalista de Primo Rivera, o fundador das falanges, e que parecia mais um fiel fervoroso do que um iludido.
Escrito em uma prosa sóbria, mas muito precisa e que flui com equilíbrio e elegância, O Rei das Sombras é o tipo de livro que, honesto em seu desconforto, também desconforta um pouco. Ele parte de um ponto de vista louvável, o de que é preciso evitar maniqueísmos em nome de uma conciliação para o futuro. Algo que Cercas, afastado oito décadas da Guerra Civil Espanhola, até pode fazer com alguma segurança. Mas é uma proposição desconcertante quando, em meio à maré montante da extrema-direita, ainda vemos tantos tão engajados no apoio a visões de mundo monstruosas. É um grande livro, mas talvez seja necessário relê-lo daqui a alguns anos no atual estado em que nos encontramos, com famílias separadas por visões políticas incontornáveis porque partem não de visões de mundo diferentes, mas de versões diferentes da realidade.
Conciliação é uma palavra bonita, mas é difícil enxergar as virtudes da cura quando a febre ainda devasta um organismo.
Foto da Capa: Javier Cercas / Divulgação
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