Tenho falado muito aqui da importância do tempo para que uma cidade se torne de fato uma cidade. O tempo, na verdade, é coadjuvante. O que importa mesmo é que as edificações, ruas e praças sejam vividas pela população. É essa vivência que vai criar o espírito do lugar, impregnando significados na sua materialidade. São as histórias de vida, afetos e desafetos, avenças e desavenças, rotinas, memórias e tantos outros atributos da alma humana que precisam de um lugar físico para serem depositados e guardados. Como sonhar sem cenários para enquadrar os sonhos?
O papel da arquitetura é justamente esse, o de criar cenários, transformar o imaterial em material. A boa arquitetura encurta o caminho para apropriação do lugar e ainda pode trazer à tona significados escondidos ou camuflados, transformando o intangível em tangível. Infelizmente essa percepção ainda não é disseminada, a maioria ainda vê um edifício apenas em sua constituição física.
Temos o infeliz exemplo de uma decisão judicial que autorizou a demolição de um conjunto de casas na rua Luciana de Abreu porque o suposto arquiteto autor do projeto não era algum famoso propalado arquiteto. Ou, entre tantos, os das casas de Caio Fernando Abreu e Dionélio Machado, de fato, casas comuns, sem relevância artística.
O tempo é grande maestro. E o tempo, nesse caso, tem seu tempo, é lento, medido em décadas, quando não em séculos. O que fazer, então, para conciliar essa característica temporal com o modo acelerado em que vivemos? Como frear a voracidade da reprodução do capital, que vive de “giro”? Gostaria de ter a resposta, mas não a tenho.
Brasília foi inaugurada em 1960 e quando a visitei, em 1974, ainda não passava de uma bela exposição de arquitetura. Foi só com as grandes mobilizações pelas eleições diretas e o fim da ditadura que os edifícios e espaços públicos feitos para a democracia puderam enfim representar seus cidadãos e se transformar em cidade. Pela qualidade dos arquitetos que a projetaram, o caminho foi mais lento do que devia, mas as condições eram excepcionalmente brutais.
Já o tempo, em Porto Alegre, não tem conseguido fazer seu trabalho – o capital imobiliário renova a cidade o tempo todo, investindo loucamente para abrigar uma população que não existe e nem existirá. Constrói-se muito em determinados bairros em detrimento de outros que vão se esvaziando, uma insensatez tremenda em uma cidade com crescimento populacional negativo. Pagaremos caro por essa falta de visão elementar.
Uma das regiões esvaziadas de investimentos, em favor dessas outras poucas, teve a sorte de deixar o tempo trabalhar a seu favor. E ele o fez. Falo da ausência de investimentos imobiliários no centro histórico. Foi o que vi, entusiasmado, num sábado desses. O centro estava movimentado, com espera no restaurante que escolhemos, centros culturais cheios e muita gente nos bares e restaurantes de calçada.
Quando Joel Gorski e eu projetamos a rearquitetura da Casa de Cultura Mario Quintana, entre 1987 e 1990, numa sala do próprio Majestic Hotel, imaginávamos, ou sonhávamos com o efeito irradiador que aquele equipamento cultural poderia ter sobre o centro da cidade a exemplo do que tinha acontecido com o Centro George Pompidou em Paris e tantos outros. Queríamos uma avenida 7 de setembro transformada em boulevard com a inversão da relação carros/pedestres. Em frente da CCMQ fizemos o calçadão que podíamos, imaginando que ele se propagaria por toda a avenida. Parecia óbvio, mas não aconteceu. Quem sabe o tempo precisa de mais tempo e isso ainda vai acontecer. Aconteceu na Rua dos Andradas, hoje uma rua muito viva e animada.
Nos anos 1980, da praça da Alfândega até o Gasômetro era impossível encontrar um lugar para tomar um cafezinho. A região passava a sensação de abandono. E de fato o era. A própria prefeitura incentivava o esvaziamento do centro com a multiplicação de novos polos comerciais em diferentes bairros. Os cinemas, por exemplo, migraram para os shoppings centers. A chamada Cinelândia, em trecho da rua dos Andradas, perdeu todas as suas salas.
O rechaço ao centro da cidade vinha do inferno dos engarrafamentos monstruosos que a opção pelo automóvel tinha produzido e, claro, a poluição atmosférica e sonora gerada por motores primitivos se comparados com os atuais. Não havia viadutos que dessem conta, não havia garagens que pudessem abrigar todos os carros que precisavam ficar guardados durante os turnos de trabalho. A cidade rodoviária que o plano diretor de 1959 tinha projetado estava colapsando.
E ainda temos que dar graças que esse plano ficou pelo caminho ou teríamos um minhocão (igual ao de São Paulo) sobre o muro da Mauá, uma garagem no lugar do Mercado Público, a substituição do Chalé da Praça XV e do antigo abrigo dos bondes por prédios de escritório. E a coisa não parava por aí, falava-se em botar abaixo o Majestic Hotel (hoje CCMQ) e o Gasômetro com sua chaminé. Ninguém sabia o que fazer com os prédios abandonados do Theatro São Pedro, Delegacia Fiscal (hoje MARGS), sede dos Correios (hoje Memorial do RS). O Mercado Livre de frutas e verduras (hoje Estação Mercado do Trensurb) e a estação de trens Santo Idelfonso não escaparam da demolição.
Pois bem, de lá para cá, investimentos públicos adequados mudaram o quadro. A Casa de Cultura, a volta do Theatro São Pedro, o MARGS, o Farol Santander, o Memorial do RS, o Museu Hipólito José da Costa, a saudosa ocupação cultural do Cais Mauá, a Feira do Livro, o Força e Luz e tantos outros pontos culturais, restaurantes, bares e cafés foram surgindo ao longo dos últimos 35 anos.
Um impulso decisivo foi o trabalho desenvolvido pelo Programa Monumenta, do IPHAN, a partir de 2001. Do Pórtico do Cais do Porto à Praça da Matriz, passando pela Praça da Alfândega foram dezenas de prédios restaurados. Porto Alegre não sabe o que deve à liderança e energia de Briane Bicca, arquiteta que coordenou com dedicação e maestria esse projeto.
A construção civil, como se vê, trabalhou muito no centro histórico nesse período. Já a indústria da construção imobiliária, não. Felizmente.