Reparação. Perdão. Desculpas. Vergonha. Resgate. Cada uma dessas palavras pode ser sentida no sábado, dia 26 de agosto, pelos participantes da atividade de lançamento do Território Negro. Para marcar as comemorações do dia do Patrimônio Histórico, a Associação de Amigos da Fazenda da Tafona, em Cachoeira do Sul, organizou um evento fora do comum, inusitado. Histórico. Não só para o município da região Central, distante 190km da Capital, não apenas para o Rio Grande do Sul, mas para o Brasil, para todos os países que ergueram suas riquezas através do sangue e suor dos povos africanos. Sábado foi uma data para pedir perdão a todas as pessoas escravizadas que trabalharam nessa propriedade. Cerca de 80 pessoas participaram da cerimônia, incluindo visitantes de outros municípios.
A programação envolveu procissão, orações, tambores, leituras e desabafos, traduzidos em poemas, textos, olhares e uma emoção contagiante. Pena que não presenciei esse acontecimento. Mas, por tabela, vou escrever o que senti ouvindo e lendo os relatos. E também, por ter acompanhado um pouco os preparativos, tentarei retratar aqui os porquês dessa empreitada ter sido tão especial.
A organização do evento foi praticamente toda feita por mulheres. O roteiro foi proposto por três integrantes do Movimento Negro de Cachoeira: Lair Vidal, Vânia Oliveira e Maria de Lourdes Soares Machado. “O que poderia ser feito para trazer à tona o reconhecimento da história de quem por ali passou?” A ideia foi devolver aos seres escravizados o protagonismo da comunidade negra que ergueu com a força do seu braço um império.
Emocionada, Lair me contou que o evento foi planejado para ser em três momentos: a procissão com as imagens de São José e Nossa Senhora Aparecida levadas por andores, com canções em homenagens; um momento de louvor e perdão; e, depois, uma chamada aos ancestrais, quando foram citados nomes de mulheres e homens escravizados, que trabalharam nessa propriedade, citados em inventários. Foi uma celebração ecumênica que tocou fundo os corações dos participantes. “A Tafona tem algo que talvez nenhum outro lugar tenha, que é a materialidade do espaço físico da rotina do trabalho. Ali tem toda a engrenagem, o maquinário que eles moveram para fazer a farinha de mandioca,” explica Lair.
Para Lair, a iniciativa da dona da propriedade, Marô, foi de extrema coragem. O que assino embaixo. Desde que encarou o compromisso, que já tinha sido liderado pela mãe, dona Gemina, em manter a casa da Fazenda da Tafona em pé, a Marô Vieira da Cunha Silva e o marido Marco Aurélio de Castro Schntz vêm desenvolvendo iniciativas para que o passado do lugar seja reconhecido. Mais que isso: que as edificações, as estruturas bem conservadas do moinho de farinha de mandioca e de polvilho – daí o nome tafona – sirvam de legado do esforço de tantos negros que ajudaram o País a prosperar.
“O progresso e a riqueza da Tafona não foram gerados apenas por homens brancos e proprietários, como os ancestrais locais, mas, também, por meio da força de trabalho, de homens e mulheres escravizados e desprovidos de qualquer posse”, afirma Jorge Luiz Vieira da Cunha, bisneto do José Sebastião Vieira da Cunha, que esteve na cerimônia. “É um exemplo a ser seguido”, acredita.
A celebração foi tão forte e comovente, que deverá se repetir no ano que vem. O evento também oficializou a Fazenda da Tafona como território negro demarcado. Há muitos outros locais em Cachoeira que são considerados territórios negros, no entanto, esses espaços não foram reconhecidos como tal.
A casa da fazenda
As edificações da Fazenda da Tafona são tombadas pelos governos municipal e estadual. A construção em estilo colonial português, teria iniciado em 1813. Naquele tempo, era chamada de Estância São José, propriedade de José Vieira da Cunha, português que veio para Brasil, na década de 1790, e que se casou com a filha de João Pereira Fortes, um dos primeiros povoadores de Rio Pardo e de Cachoeira, essa última, minha terra natal.
A fazenda, que fica a 17km do centro da cidade, é remanescente de antiga sesmaria. Teve criação de gado e agricultura, incluindo a produção de farinha de mandioca. A tafona é um espaço grande, antigamente de chão batido, coberto, com um conjunto de equipamentos artesanais movidos por tração animal (bois), que foi mantido em ótimas condições pelos proprietários.
Minha dívida
Sendo branca, filha de descendentes europeus, como muitos da “terrinha”, creio que sei, nem que seja um pouco, do significado dessa iniciativa. Em Cachoeira, onde vivi até meus 19 anos e voltei incontáveis vezes, era considerado “normal” negros não se misturarem aos brancos.
Minha intuição me dizia que devia apurar, saber mais o que tinha acontecido. Eis que ao conversar com a Lair ela faz perguntas sobre minha família. E aí, vem o mais incrível: ela conviveu com a Laide, minha segunda mãe, uma das pessoas mais importantes da minha existência, na Casa da Criança Sagrado Coração de Jesus. Sim, naquele tempo era muito comum moças que não tinham sido adotadas irem para casas de família. Começo a chorar, me emociono. Me engasgo. Conversar com a Lair também serviu de resgate para mim. Eu queria ter estado lá para sentir a energia, os tambores para pedir perdão. No ano que vem, não perderei essa oportunidade.
Confira o texto que foi lida pela Marô durante a cerimônia:
CARTA DE PERDÃO
“Pedir perdão é pensar: como chegamos até aqui?
Porque estamos aqui?
Quem éramos e quem somos hoje?
Nós somos fruto da história, e ela nos trouxe até esse momento.
Somos fruto da História Moderna e Contemporânea. Da “descoberta” do Novo Mundo, das Grandes Navegações, das guerras de conquista.
Chegamos até este agosto de 2023 marcados por um Pacto Civilizatório, que tem como base a apropriação de territórios por povos livres.
Reconhecemos a história tal como ela é, com suas glórias e agruras. Reconhecemos que a colonização não foi pacífica, mas uma guerra injusta, desigual e desumana.
Reconhecemos as belezas e as feiuras de nossa história, sem fingimentos e maquiagens, porque queremos superar e corrigir nossos erros e equívocos.
Sim, foi um erro se apossar deste território, desta América indígena, como se aqui não existissem habitantes. Foi cruel arrancar o povo africano de seu continente, da Mãe África, para escravizar e explorar seu trabalho, seus corpos e seus espíritos.
Estamos aqui para reconhecer e pedir perdão pela exclusão, pela maldade e pela dor que habita nosso passado. Porque precisamos ser capazes de aprender com os erros cometidos e nunca mais repeti-los. Cabe a nós o restabelecimento de outros marcos civilizatórios, nos quais todo o ser seja respeitado na sua existência, sua diversidade, como sujeito livre, histórico e com direitos.
Queremos seguir fazendo história, sem o pesar de outrora, com as mãos limpas, a consciência em paz e o espírito livre de culpa. Como cidadãos e cidadãs dispostos a construir uma outra sociedade, na qual a exploração e a apropriação não sejam mais aceitáveis. Onde o racismo e qualquer outro tipo de preconceito seja combatido e extinto.
Essa é a lição que fica. Por isso pedimos perdão, em nome da Fazenda da Tafona, por este modelo de colonização e de invasão.
Pedimos perdão e também somos gratos pelo trabalho que edificou esta casa, que produziu riquezas nas lavouras, nos engenhos e nas construções deste país.
Sobretudo agradecemos pela crença, pela perseverança, por nos ensinarem sobre esperança. Por nos ensinarem sobre sobrevivência.
Pelos nossos antepassados, pedimos perdão.
Por nós, reafirmamos o compromisso pela construção de relações mais humanas.
Pelos nossos filhos e também pelas gerações que virão, pedimos bênçãos pela história que trilharemos, como sociedade brasileira livre, plural e democrática.”
Marô Vieira da Cunha Silva
(Edição da carta de Mariana Carlos)