Já faz um tempo que reflito sobre o conceito de ubuntu: “Eu sou porque nós somos”, que está superpopularizado entre os nossos irmãos e irmãs pretas e pretos e que tomou proporções gigantes inclusive nas outras etnias. O ditado com origem africana nos faz relembrar que nós somos uma sociedade, sócios uns dos outros, e nos relembra que realmente precisamos o tempo todo de toda nossa “aldeia”.
Pergunto-me com relação às coisas materiais ou mais difíceis de alcançar: um carro, uma casa, um emprego melhor, uma viagem para longe. Quantos de nós negros conseguem simplesmente com seu salário conquistar todas essas coisas?!
Esse ubuntu surgiu quando na tua vida? Porque minha primeira lembrança de ubuntu foi quando eu ainda era lobinha (pra quem desconhece o termo: a ala infantil do movimento escoteiro é chamada de Alcateia, logo, as crianças são chamadas de lobinhos e lobinhas). E nessa época nós viajamos bastante com o grupo escoteiro. Acampamentos, deslocamentos, material, tudo custava uma grana. Nem sempre todos tinham, mas quase sempre todos iam.
Na década de 90 ainda usávamos muito jornal impresso, e era um artigo que valia muito!
Portanto, nós tínhamos o hábito de circular em nossos bairros arrecadando jornais e revistas usados e depois vender para custear nossas atividades, meus pais, avós e tios eram quem mais contribuíam. Como disse: alguns não precisavam, mas todos ajudavam!
Seria essa uma maneira de praticar ubuntu?!
Qual foi a primeira vez que tu precisaste fazer uma vaquinha?
Hoje tenho narrativas de mulheres pretas que viveram coisas incríveis por causa da ajuda de suas famílias. A exemplo, cito Laiara Amorim, a primeira mulher preta pilota de avião que conheci e a quem tenho a honra de chamar de amiga. Sua família foi responsável pelas primeiras horas de voo da Laiara. Entende a importância disso?
Qual foi a tua primeira ação afirmativa?
Faz sentido que nossas redes de apoio sejam responsáveis pela ascensão de nossas vidas na mesma proporção que nós somos responsáveis por manter essas redes acesas e em funcionamento?
Quantas vaquinhas, rifas e arrecadações tu já contribuiste mesmo sem refletir sobre o conceito “eu sou porque nós somos”?
Dessas, quantas eram de alguém muito próximo? Tu já paraste para pensar que isso também é um ato político?! Já pensou se nós não tivéssemos nossos rituais de chás de casa nova, chás de fraldas, chás de panela?
Quero abrir mais um pouco da minha própria experiência pra demonstrar algo que acredito que muitas pessoas vão se identificar. Havia 30 pessoas na minha casa no dia do meu chá de casa nova, foi uma grande vitória assinar a compra de um apartamento de 43 metros quadrados e minhas familiares, amigas, madrinhas e todas as pessoas que puderam, vieram me abraçar. Sem essas pessoas eu não teria torradeira, nem liquidificador, nem jogo de pratos, nem puxa saco, nem tantos utensílios extremamente úteis. Imagine 30 pessoas num apartamento de um quarto, agora imagine o tanto de alegria que isso gera por metro quadrado!
Eu ainda não conhecia o termo ubuntu, mas já vivia ele!
Eu, Kênia, vivo o ubuntu desde 1985, pois ainda no ventre da dona Berenice, eu já tinha recebido o poder da união dessa linda rede de apoio.
Teu ubuntu começou quando?
*Kenia Aquino é comissária de voo, graduada em Comércio Exterior, pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global, cofundadora do coletivo Quilombo Aéreo e diretora de operações da Odabá.