Falar da paisagem urbana da cidade de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX, obrigatoriamente nos remete à figura do arquiteto alemão Theodor Alexander Josef Wiederspahn (1878-1952), mais conhecido por Theo. Especialmente se o assunto envolver um dos três espaços urbanos mais significativos da área central, a Praça da Alfândega.
No século XVIII, quando Porto Alegre nasceu, às margens do Guaíba, surgiu um espaço público que ganhou a denominação popular de Largo da Quitanda. A importância do local levou à construção de um embarcadouro (1783), que seria refeito pelo Governador da Capitania, Paulo da Gama, em 1804. Tratou-se da construção do cais que seria visto por Auguste Saint Hilaire (1779-1853), em 21 de julho de 1820, quando descreveu a Rua da Praia: “Quase na metade desta rua existe um grande cais dirigido para o lago, e ao qual se vai por uma ponte de madeira de cerca de cem passos de comprimento, guarnecida de parapeito e mantida por pilares de alvenaria. As mercadorias que aí se descarregam são recebidas na extremidade dessa ponte, sob um armazém de vinte e três passos de largura por trinta de comprimento, construído sobre oito pilastras de pedra em que se apoiam outras de madeira. A vista desses cais seria de lindo efeito para a cidade se não houvesse sido prejudicada pela construção de um edifício pesado e feio, à entrada da ponte, de quarenta passos de comprimento destinado à alfândega” (SAINT-HILAIRE, 1974, P.__). O prédio da alfândega (1821-1824) é o edifício citado. Com a construção, paulatinamente seriam transferidos os quitandeiros para a Praça do Paraíso (hoje Praça XV de Novembro), onde viriam a ser construídos os mercados, provisório e definitivo (este último construído sobre aterro no lado voltado para o Guaíba, ladeado por docas para atende-lo).
No mapa de Porto Alegre, elaborado por Luís Pereira Dias, em 1839, é possível ver o pontilhão que ligava a alfândega ao armazém, descrito pelo viajante, botânico e naturalista francês, imagem que chama a atenção pelo fato de que a borda do lago ainda era a original.
Após a Guerra dos Farrapos, entre 1856 e 1858, foram realizadas melhorias na área. No alinhamento da atual rua Sete de Setembro, foi feita a retificação com um novo cais composto de um muro alto de pedra, com uma escadaria de acesso ao lago, de cada lado do novo trapiche, que igualmente ao anterior, levava a um armazém na extremidade. Esta nova conformação pode ser vista no mapa da cidade, de 1881, de autoria do engenheiro Henrique Breton. Há poucos anos, quando o Projeto Monumenta, liderado pela arquiteta Briane Panitz Bicca, realizou a revitalização do local, hoje conhecido como Praça da Alfândega, escavações arqueológicas puseram temporariamente à vista do público, durante a Feira do Livro, uma das escadas e foram encontrados e documentados os vestígios destes remanescentes do passado.
O momento áureo do local deu-se com a construção da primeira etapa do Cais Mauá (1911-1913), que contemplou o aterramento da área compreendida entre as ruas Capitão Montanha e General Câmara, desde a frente da Praça da Alfândega (cais da segunda metade do século XIX) voltada o lago, até o atual muro do cais.
Naquele momento a diversificação da base econômica do Estado, representada pelas áreas da agricultura, comércio e indústria, deram vitalidade à economia, sendo que a capital passou a demandar e atrair profissionais na área da construção (arquitetos, engenheiros, escultores e técnicos). O historiador Arnoldo Doberstein classificou o período entre 1910 e 1914, de “quadriênio glorioso” (DOBERSTEIN, 1992, p. 101).
Nesta conjuntura despontava o Escritório do engenheiro Rodolfo Ahrons (1869-1947), formado em Berlim (1895), e que assumiu a empresa de seu pai, Wilhelm Ahrons (1836-1915), que tinha se estabelecido em Porto Alegre, no fim do Império. Bem relacionado com lideranças políticas republicanas e da maçonaria, Rodolfo alavancou a empresa. De 1903 a 1907, o arquiteto Herrmann Otto Menchen (1876-¿) esteve à frente do setor de projetos da mesma. Com a sua saída, Ahrons procurava um substituto. Foi a oportunidade para Theo Wiederspahn, que assumiu o cargo, em 1º de setembro de 1908, trabalhando na empresa até dezembro de 1915 (WEIMER, 1985, p. 99).
A empresa realizou o aterro que deu origem ao primeiro trecho do Cais Mauá. Nele, Wiederspahn projetou os edifícios-sede da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional, hoje Museu de Artes do Rio Grande do Sul (projeto, 1912; construção, 1913-1915), com estatuária fachadista do escultor alemão, Alfred Adloff (DOBERSTEIN, 1992, p. 32), e dos Correios e Telégrafos, atual Memorial e Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (projeto, 1909; construção, 30/09/1910 – 31/12/1913), com estatuária de Wenzel Folberger (DOBERSTEIN, 1992, p. 28). Ambas edificações neo-barrocas, são icônicas do Ecletismo no sul do Brasil. Com os dois edifícios, tendo como pano de fundo o pórtico central do novo cais (como se fosse um vestíbulo de chegada à cidade), ladeado por seis armazéns adjacentes, importados da Casa Daydée, de Paris, conformava uma perspectiva de rara beleza que ainda hoje pode-se contemplar. As torres das duas edificações balizaram o enquadramento do novo porto, visto da tradicional “Rua da Praia”. Uma avenida, que recebeu a denominação de Sepúlveda (homenageando o Governador da Capitania quando a cidade surgiu), foi criada para conectar o novo cais com o centro da cidade. Esta nova perspectiva superava a anteriormente, realizada por Georg Karl Phillip Theodor von Normann (1818-1862), quando este concebeu, na segunda metade do século XIX, no lado norte da então Praça Dom Pedro II (hoje Marechal Deodoro da Fonseca), voltado para o Guaíba, duas edificações de volumes e linguagens semelhantes, que tinham oferecido à povoação uma perspectiva notável, composta pelas edificações do Teatro São Pedro (1949-1858) e da Câmara (1856-1871).
Wiederspahn fez mais, concebeu no entorno da Praça da Alfândega uma série de edificações que ainda hoje contribuem para caracterizar o notável espaço que a envolve. Theo é o autor de parte da fachada do atual Banco Safra, no lado sul da Praça, com linguagem neo-barroca, do edifício que abrigou no térreo o Cine Guarani e nos demais andares a empresa Previdência do Sul (1910-1913), à Rua dos Andradas, nº 1035, cuja estatuária fachadista foi materializada pelo escultor austríaco Wenzel Folberger (DOBERSTEIN, 1992, p. 59).
No lado oeste, na esquina das ruas Sete de Setembro com Capitão Montanha, concebeu, na segunda década do século XX, o antigo prédio que abrigou a Caixa Econômica Federal, demolido.
Junto ao Largo dos Medeiros, na esquina da Rua dos Andradas, com a Rua General Câmara, realizou o Palacio Chaves, que abrigou nos três primeiros pisos o famoso Café Colombo (1909-1912), também demolido. Na rua dos Andradas, nº 1212, encontra-se a antiga Casa Victor (1912-1913), em cuja estatuária trabalhou o espanhol Jesus Maria Corona (1871-1938). Atualmente o prédio abriga a Editora Edições Paulina.
Na rua General Câmara, nº 250, encontra-se o prédio do antigo Cine Avenida (1911-1912), cuja estatuária fachadista coube ao escultor berlinense Alfred Staege (DOBERSTEIN, 2002, p. 80). Na mesma quadra, na direção da rua Sete de Setembro, quase ao lado, existiu a sede do Brasilianische Bank für Deutschland, conhecido como “Banco Alemão” (1910-1912), também de Wiederspahn, cujas cariátides que guarneciam os acessos, foram modeladas por Wenzel Forberger (CORONA, 1957, p. 158). Lamentavelmente este prédio também foi destruído.
Apesar das perdas constatadas, Wiederspahn contribuiu decisivamente para a germanização da arquitetura de Porto Alegre na República Velha. Deixa-se ao leitor uma provocação para que percorra os locais aqui citados. Certamente ao fazê-lo, além de conhecer um pouco mais aquela região do centro, passará a admirar e amar um pouco mais a capital sul-riograndense.
Notas:
DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. Porto Alegre 1900-1920 – Estatuária e ideologia. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. Estatuários, Catolicismo e Gauchismo. Porto Alegre: PUCRS, Coleção história nº 47, 2002.
CORONA, Fernando. 50 anos de formas plásticas e seus autores. In: BECKER, Klaus. Enciclopédia sul-riograndense. Canoas: La Salle, 1957, v. 3.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974.
WEIMER, Günter. Theo Wiederspahn, arquiteto. Revista Projeto nº 80 (ensaio & pesquisa), São Paulo, Outubro de 1985, p. 98-102.