Aí, o sinal fecha. E bem ali, na frente dos carros parados, está o retrato da eterna desigualdade que, com certeza, mexe no coração e faz tremer o pé no freio de alguns mais sensíveis.
Ao lado da faixa que oferece uma casa por R$ 2,9 milhões, o brasileiro carrega a placa escrita desse jeitinho, com os pontos e tudo: “preciso. ajuda. com algo de você. compra comida. filha Deus.” E um número de celular. Chave para o Pix, a mais inclusiva ferramenta tecnológica criada até hoje, que o diga o ex-presidente Bolsonaro como veremos adiante…
Entre os carros parados, um tem placa da Câmara dos Deputados. De um deles, um braço é espichado pela janela. O sinal já ficou amarelo, o homem acelera o passo em direção ao braço. Para correr, não tem saúde. Não dá para ver o que aquela mão oferece. Está meio fechada. Então deve ser moeda…
O pix dificulta a desculpa do “tô sem trocado, moço…”, embora não acabe com o esfarrapado argumento do “não dê esmolas, dê dignidade…” Mas alguém ali vai abrir a porta do carro para levar o pedinte a um emprego? De jardineiro, que seja, na casa de R$ 2,9 milhões? Não. Nem daquele com placa do que se convencionou chamar da Casa do Povo.
O sinal abriu. Ficou verde. Verde esperança. Que, afinal, esperar e sonhar é tudo o que aquele brasileiro sempre fez… Esperou na infância que a escola chegasse perto dele. Na adolescência, sonhou com o tênis de marca, a camiseta com a cara do ídolo, com o cordão de ouro no pescoço… Porém, quando viu o amigo, com todos aqueles acessórios, desarmado e noticiado como “soldado do tráfico morto em confronto com a polícia”, deixou o sonho pra lá. Foi ser flanelinha no sinal fechado para, pelo menos, garantir algum e ajudar a mãe e os irmãos menores
Agora, já adulto quase chegando na linha descendente da vida, continua no sinal. Esperando. E sonha que alguém naqueles carros tenha anotado a chave do Pix… Esperar, esperar e sonhar. Sonhar com uma casinha qualquer, um barraco qualquer… Por que não sonhar?
Se o ex-presidente Bolsonaro, que acumula as aposentadorias de deputado federal (algo em torno de R$ 35 mil, segundo a Câmara dos Deputados) e de capitão do Exército com o salário de presidente de honra do PL (perto de R$ 40 mil como admite o próprio partido), arrecadou via Pix, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), R$ 17 milhões de janeiro ao início julho deste ano (2023*), por que o homem do sinal não pode sonhar, ao menos, com o suficiente para a lona preta que vai servir de abrigo debaixo de uma marquise, ou num gramado por aí?
Se você não lembra, ou não sabe, eu conto: Bolsonaro, quando presidente da República, sempre se recusou a usar máscara de proteção contra a Covid 19 – que, segundo as estatísticas oficiais, matou mais de 700 mil brasileiros – e, ainda por cima, promoveu várias aglomerações.
Por causa desses malfeitos, foi condenado a pagar multas que somaram pouco mais de R$ 900 mil. Para quitar essa dívida e ficar bem com a Justiça, Jair resolveu poupar o pouco salário que recebe e contar com a solidariedade dos brasileiros. Abriu uma vaquinha pelo Pix. Acredite se quiser, ele mesmo – Bolsonaro – e os filhos garantem que os R$ 17 milhões são a soma de doações no valor de R$ 2 e R$ 3…
Ah é… tinha um carro da Câmara dos Deputados no sinal fechado. O passageiro não dever ter visto o homem com a placa. Certamente, estava preparando perguntas para algum depoente em alguma CPI dessas que investigam compra e venda de joias e bisbilhotices de um hacker vigarista. Fosse época de eleição, ele teria tempo para ver súplica do eleitor.
Nos sinais por aí, a vida segue…Até a próxima eleição. E aí será a vez de os brasileiros dizerem que o número do título de eleitor não é chave de Pix.
Foto da Capa: Acervo do autor
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*Texto originalmente publicado aqui em 21/08/23, como: “Título de eleitor não é chave de Pix”