O Arraial do Banho de São João, em Corumbá, me lembrou o conto de Júlio Cortázar que serve de título para esta coluna. Não tanto pelo conto em si, que é uma obra prima1, mas pela atmosfera surreal e inquietante a que nos leva a literatura de Cortázar. Foi o que muitos sentiram ao ver as imagens da festa.
O Arraial e o fogo
O Arraial do Banho de São João é uma festa junina tradicional da cidade, organizada todos os anos pela prefeitura de Corumbá. O site da prefeitura o promoveu com frases como “a fé do nosso povo é patrimônio do Brasil” ou, reproduzindo a fala do prefeito Marcelo Iunes: “…mesmo com a crise financeira estamos fazendo essa festa brilhar cada vez mais…”. Segundo ele, “não é um gasto, é um investimento”. Não sei quantos cidadãos da cidade concordam, mas, vá lá, junho é a época das festas de São João e muitas prefeituras pelo Brasil afora promovem festas desse tipo.
Acontece que o Pantanal está queimando, e Corumbá é o município com mais focos de incêndio. Isso já seria o suficiente para muitos questionarem se era o momento de realizar uma festa, ainda mais tendo como um dos símbolos a fogueira! Então, como se não bastasse, vieram as imagens.
Nelas aparece, em primeiro plano, uma pequena multidão dançando ao som de músicas sertanejas e, no fundo, uma enorme cortina de fogo iluminando a noite. Não poderia haver ilustração mais eloquente das prioridades que governos e mesmo parte da população dão aquele que pode ser o pior desastre ambiental do Pantanal em sua história.
Logo vieram os comentários na internet:
“…a fogueira acesa faz horas no Pantanal…”
“…manter a festa no estado em que a cidade está, cheia de fuligem e fumaça,…é inacreditável!…”
Voltarei a falar do Pantanal mais adiante. Mas antes vamos ver como está a situação de secas e queimadas no mundo.
Por que as florestas do mundo estão ardendo
Embora o fogo faça parte, e seja em alguns casos até fundamental, de vários ecossistemas no mundo – ao eliminar ervas daninhas e romper, pelo calor, cápsulas de proteção de sementes – a intensidade dos incêndios florestais está muito maior do que seria necessário para garantir o equilíbrio ecológico.
O que está acontecendo é que, mesmo em lugares onde o número de focos de incêndio diminuiu, a frequência de queimadas extremas está aumentando. E são elas que causam as maiores devastações. Dados recentes apontam que essa frequência mais do que dobrou nas últimas décadas.
Muitas vezes em países onde, pelo que consta, há poucos incêndios criminosos. No Canadá, Estados Unidos e Rússia, que são países onde não há registos de queimadas sendo usadas para fins de desmatamento ilegal – como é comum no Brasil –, houve um aumento de 2,2 vezes na frequência e 2,3 na intensidade das queimadas extremas.
A razão para isso são as mudanças climáticas, que estão criando condições mais quentes e secas, o que facilita a propagação do fogo. Vejamos as principais causas:
- Aumento das temperaturas: as mudanças climáticas estão fazendo com que as temperaturas médias (e seus extremos) subam globalmente, o que leva à maior evaporação, secando a vegetação e a tornando mais inflamável.
- Secas: as mudanças climáticas estão tornando as secas mais frequentes, intensas e prolongadas. Condições secas, evidentemente, tornam mais fácil a ignição do fogo e sua disseminação.
- Degelo precoce: não é algo que afete diretamente o Brasil, mas é um fator importante nos países mais frios. O gelo acumulado nas montanhas não apenas está ficando menos volumoso mas, por causa das maiores temperaturas, derretendo cada vez mais cedo no final do inverno ou início da primavera. O resultado disso são verões e outonos muito secos, prologando e intensificando a temporada de incêndios.
Por conta disso, incêndios florestais emitiram 33,9 bilhões de toneladas de CO2 entre 2001 e 2022. Mais do que o Japão, que é o sexto maior emissor do mundo. E essa situação só tende a se agravar.
A maior tragédia da história do Pantanal?
Quando terminou a época as queimadas no Pantanal em 2020, quando cenas do verde transformado em cinza, animais queimados e biomas inteiramente destruídos comoveram a todos, a maioria de nós, incluindo o povo pantaneiro, imaginou que não veríamos aquelas imagens tão cedo. Pois agora, quando estamos no início da estação seca, já foram ali registrados 3.262 focos de incêndio – 22 vezes o registrado em junho de 2023 e, mais importante, a área queimada já é 54% maior que a de 2020 nessa época.
Tais números indicam que há uma alta probabilidade de que as queimadas deste ano sejam as piores da história da região, com o que vimos em 2020 sendo apenas uma triste amostra do que está por vir. Por que isto está acontecendo? Eis algumas razões:
- O Pantanal está secando. A maior área alagada do mundo, berço de um bioma único e de incomparável complexidade, já perdeu, segundo estudo do Instituto MapBiomas, inacreditáveis 80,7% de sua área alagada desde 1985. Isso se deve à (1) redução da umidade vinda da Amazônia, (2) aumento de áreas cultivadas no entorno do pantanal – que está causando o assoreamento dos rios e (3) a substituição do pasto natural pelo pasto plantado, que seca e queima mais facilmente.
- Desmatamento e agropecuária: o desmatamento para expansão da fronteira agrícola e pecuária no interior do Pantanal é um dos principais fatores que contribui para as queimadas. A vegetação nativa é removida e queimada para dar lugar a áreas de cultivo e pastagens. Além dos prejuízos aos ecossistemas, o desrespeito às normas ambientais agrava o problema das queimadas.
- Queimadas criminosas: quando um fazendeiro desrespeita a legislação está incorrendo em crime ambiental. Mas há muito mais do que isso. Criminosos invadem áreas públicas ou mesmo propriedades privadas e usam as queimadas ilegalmente para limpar áreas, criar gado ou facilitar a caça.
Consequências das queimadas nos biomas do Brasil
O desmatamento associado a queimadas é, no momento, o maior problema ambiental brasileiro, já que grande parte do desmatamento é realizado seja diretamente pelo fogo, seja utilizando o fogo para incinerar o que foi derrubado por máquinas. Além de destruírem biomas e seus solos, poluem o ar, prejudicando a saúde das populações, além de emitirem uma grande quantidade de gases de efeito estufa2.
A Amazônia é o bioma que apresenta a maior área destruída por desmatamento e queimadas. Grande parte para sua transformação em pastagens para o gado. Seria importante que as pessoas tivessem uma consciência mais aguda do enorme custo ambiental que representam seu bife de todo dia e sua picanha do fim de semana.
Como toda floresta tropical, a floresta amazônica, com seu solo pouco espesso e intensa reciclagem de água, depende de um equilíbrio frágil. Estima-se que se a floresta perder de 20 a 25% de suas árvores pode se transformar em uma savana, liberando bilhões de toneladas de carbono na atmosfera e reduzindo em pelo menos 40% o volume de chuvas do Centro-Oeste e do Sudeste. Esse ponto, aparentemente, já foi atingido no sudoeste da Amazônia, e pode chegar a extensas regiões em bem pouco tempo.
Finalmente, o Cerrado é outro bioma que está seriamente ameaçado pelo desmatamento e queimadas. Diferentemente do Pantanal e da Amazônia, a vegetação do Cerrado coevoluiu com o fogo. Algumas plantas dependem do fogo para liberar suas sementes. Mas a situação no bioma está fora de controle. Em 2023, o desmatamento (na maior parte das vezes precedido ou seguido por queimadas) na Amazônia se reduziu em 62,2% – um valor significativo, se assim permanecer – enquanto no Cerrado aumentou 68%.
A agricultura no Cerrado é um caso de sucesso da pesquisa e do agronegócio brasileiro. Mas se a devastação continuar ele pode se tornar uma região semiárida, ou mesmo sofrer um processo de desertificação.
Fogo rápido, resposta lenta
É preciso atuar mais em prevenção, ou seja, não deixar os incêndios começarem ou, se começarem, evitar que se propaguem. Até aqui, a resposta do governo para a tragédia das queimadas está sendo reativa. E lenta. Ou seja, esperam que os incêndios adquiram um porte gigantesco, para então começarem a agir. Muitas vezes de maneira pouco eficiente. Nessas horas colocam a ministra Marina Silva para se apresentar como a face do governo, com suas explicações pouco convincentes. Quando as tragédias passam, a ministra desaparece, e daí imagino que ela seus auxiliares devam vagar pelos gabinetes de Brasília, atrás de verbas para a prevenção, que nunca chegam.
1Todos os Fogos o Fogo é um livro com 8 contos publicado em 1966 por Julio Cortázar. O conto que ficou mais famoso foi “A Autoestrada do Sul”, que foi adaptado para o cinema por Jean-Luc Godard.
2Veja mais detalhes sobre a relação entre desmatamento e queimadas e o efeito estufa no meu livro “Planeta Hostil”. O livro, que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em livrarias online como a Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Joédson Alves / Agência Brasil
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