Peguei o título desta coluna emprestado de um dos meus livros favoritos do Nobel de literatura português José Saramago. No romance, publicado em 1997, logo na sequência dos também maravilhosos História do cerco de Lisboa (1989) O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e Ensaio sobre a cegueira (1995), Saramago nos apresenta em Todos os nomes o protagonista sr. José, um burocrata modesto de uma repartição pública com toques Kafkianos chamada Conservatória Geral do Registo Civil. Na descrição de Saramago, a Conservatória funciona como um mastodôntico mega cartório por onde passam todos os documentos oficiais sobre os cidadãos do país algo indefinido em que a narrativa se situa.
“Para não perder o fio à meada em assunto de tal transcendência, é conveniente começar por saber onde se encontram instalados e como funcionam os arquivos e os ficheiros. Estão divididos, estrutural e basicamente, ou, se quisermos usar palavras simples, obedecendo à lei da natureza, em duas grandes áreas, a dos arquivos e ficheiros de mortos e a dos ficheiros e arquivos de vivos. Os papéis daqueles que já não vivem encontram-se mais ou menos arrumados na parte traseira do edifício, cuja parede do fundo, de tempos a tempos, em consequência do aumento imparável do número de defuntos, tem de ser deitada abaixo e novamente levantada uns metros adiante. Como será fácil concluir, as dificuldades de acomodação dos vivos, ainda que preocupantes, tendo em conta que está sempre a nascer gente, são muito menos prementes, e têm sido resolvidas até agora, de modo razoavelmente satisfatório, quer pelo recurso À compressão mecânica horizontal dos processos individuais colocados nas prateleiras, caso dos arquivos, quer pelo emprego de cartolinas finas e ultrafinas, caso dos ficheiros.”, descreve a narrativa na voz entre distante, clínica e irônica que tornou a assinatura do estilo de Saramago na segunda metade de sua carreira.
O sr. José é um funcionário exemplar, e por isso mesmo sua vida é um tédio de repetições incolores copiando e recopiando registros, averbando novas informações às fichas sobre cada indivíduo, substituindo as capas de arquivos antigos roídos pelo tempo. A diversão que o afasta um pouco dessa monotonia é colecionar recortes de imprensa com notícias sobre algumas pessoas famosas – “sem outro motivo que essa mesma celebridade, uma vez que lhe é indiferente que se trate de políticos ou de generais, de actores ou arquitetos, de músicos ou de jogadores de futebol, de ciclistas ou de escritores, de especuladores ou de bailarinas, de assassinos ou de banqueiros, de burlões ou de rainhas da beleza.”
Quando percebe que aqueles textos informam muita coisa superficial mas dizem pouco sobre os fatos mesmos das vidas de seus colecionados, o sr. José passa a averiguar os registros que a conservatória mantém sobre os famosos, fazendo, de modo clandestino, suas próprias “fichas” sobre as celebridades que coleciona: “algo estava a faltar às suas colecções, isto é, a origem, o simples registo de nascimento das pessoas famosas cujas notícias de vida pública se dedicada a compilar. Não sabia, por exemplo, como se chamavam os pais do bispo, nem quem tinham sido os padrinhos que o assistiram no baptismo, nem onde havia nascido exatamente, em que rua, em que prédio, em que andar”.
A surpresa
Um dia, ao pegar um certo número de registros sobre alguns famosos de seu interesse, por engano o Sr. José também dá de mão no verbete de uma mulher anônima, “uma mulher de trinta e seis anos, nascida naquela mesma cidade, e dele constam dois averbamentos: um de casamento, outro de divórcio”.
Pelos motivos opostos aos que o levaram a criar sua coleção de “figuras célebres”, a ficha da mulher anônima desperta no pacato sr. José um fascínio irresistível. Assim como havia se convencido de que a compilação que fazia das notícias superficiais sobre os famosos não forneciam detalhes o bastante, o sr. José também percebe que a mera formalidade das anotações nos registros oficiais não são o suficiente para montar o perfil mínimo dessa pessoa sem celebridade que agora desperta seu interesse. Essa descoberta lança o sr. José em uma jornada febril não apenas pelos meandros da burocracia na qual sempre trabalhou algo irrefletidamente como pelos labirintos de sua própria visão de mundo, obrigando-o a encarar o oceano de mistério e nada que separa um exemplar do gênero humano de outro.
O início do romance, de onde extraí os trechos que reproduzi neste texto, se desenvolve um pouco como uma sátira kafkiana à pretensão totalizante e por vezes totalitária da burocracia oficial. Contudo, quanto mais o sr. José mergulha na busca pela informações da mulher anônima, mais o livro se torna uma fábula desconcertante em sua tristeza e comovente em sua humanidade. O sr. José parte de uma constatação que, depois de ser despertada, parece algo óbvia, mas à qual ele talvez não tenha atentado antes pelo próprio exercício de seu papel na máquina registradora da Conservatória: sabe-se muito pouco sobre quem de fato é uma pessoa pela simples enumeração de datas e dados em uma ficha, e encontrar somente um nome não é conhecer uma identidade.
O incêndio
Com as enchentes tomando conta do Rio Grande do Sul, derrubando pontes e isolando comunidades inteiras, talvez a imprensa venha a dedicar daqui para diante menos atenção do que deveria às repercussões do caso do incêndio em uma das unidades da Pousada Garoa em Porto Alegre. Mas antes que o Estado fosse submerso em água, houve uma cobertura bastante intensa do que ocorreu, a ponto de eu, tendo apenas acompanhado o caso pela mídia, esteja informado de muita coisa sobre esse episódio, as informações disponíveis a todos nós são fartas até aqui.
Eu soube pela imprensa, por exemplo, que a pousada ficava na Avenida Farrapos, entre a Garibaldi e a Barros Cassal, bem próximo a um posto de gasolina (de acordo com um amigo meu que conhece bem a região, o edifício em si era onde ficava anteriormente a loja da Zaniratti que está agora na calçada do outro lado, mas eu não saberia confirmar essa informação). Eu soube que morreram 10 pessoas no incêndio, que outras cinco ainda estão internadas em Estado grave.
Como seria de se esperar de um evento desse tipo de magnitude, a imprensa se concentrou também na apuração dos porquês e das responsabilidades sobre o caso. Assim, fiquei sabendo também que a pousada não tinha alvará nem PPCI, que seu dono já foi duas vezes condenado por estelionato – isso eu soube pelo site da Matinal. Que a prefeitura paga R$ 2,7 milhões por ano à rede de pousadas. E que moradores pagam em torno de R$ 500 por mês, o que explicaria as condições do lugar (mas não a sujeira ou a falta de manutenção, acho eu, mas eu não sei de nada).
Vi também imagens dos quartos algo degradados que eram oferecidos aos ocupantes da pousada, e a maioria deve ter visto algo parecido em um vídeo publicado pelo Giovanni Grizotti na página de GZH no dia 27 de abril, mas eu já tinha visto as pousadas por dentro, sem o recurso recorrente e algo sensacionalista da “câmera oculta”, em matéria do Sul21 publicada um dia antes e assinada por Luís Gomes. Aliás, nos primeiros dias o Matinal e o Sul21 deram um verdadeiro banho de cobertura do assunto nos jornalões do Estado. Se vocês precisam de um motivo para apoiar o jornalismo independente, eis um aí.
Soube também que o Boca de Rua, jornal com mais de 20 anos de história fruto de um projeto pioneiro e heroico de contar a vida dos moradores em situação de rua pela voz deles mesmos, foi barrado na coletiva de imprensa convocada pelo prefeito Sebastião Mello, e essa é uma informação que eu não sabia, mas sabendo, não me surpreende. Aliás, soube que o Boca de Rua denunciou ainda em 2022 as péssimas condições da pousada e que em 2023 outra unidade pegou fogo, na São Jerônimo, matando uma pessoa. O que eu não sei e talvez nunca saiba é por que, apesar disso, a prefeitura não rompeu contrato, as fiscalizações da Fasc seguiram em ritmo de rotina e o dono era até avisado, segundo a primeira reportagem decente sobre o tema que eu vi num grande veículo, esta, do mesmo Grizotti.
Os Nomes
Soube até mesmo que cinco dos mortos foram identificados. Quatro deles foram enterrados em um sepultamento coletivo. Soube até que o secretário municipal de Desenvolvimento Social e o presidente da FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) estiveram no local. Soube, uma vez que porta arrombada, tranca de ferro, que o prefeito agora cobra fiscalizações mais rígidas da pousada, dois incêndios, 11 mortes e uns 20 feridos depois. Antes tarde do que nunca, acho.
E com tudo isso, uma coisa eu ainda não sei. E lamentavelmente, com o foco da imprensa desviado por outra nova tragédia anunciada, a das cheias e da destruição da infraestrutura em grande parte do estado, talvez nunca saiba. Reproduzindo a invisibilidade que as vitimava em vida, eu não sei quem são as pessoas mortas no incêndio. Das 10 vítimas de agora, seis já foram identificadas. E de apenas cinco delas, assim como o sr. José, do livro de Saramago, eu sei os nomes, mas não sei quem foram.
Anderson Gaúna Corrêa, Dionatan Cardoso da Rosa, Maribel Teresinha Padilha, Julcemar Carvalho Amador e Silvério Roni Martin. Até o momento em que escrevo este texto, apenas Anderson, de 46 anos, teve o corpo reclamado por familiares.
Refaçam na memória de vocês o modus operandi das redações de veículos nacionais quando um sinistro de proporções coletivas vitima um grande número de pessoas. Talvez não no dia seguinte, mas muitas vezes no fim de semana seguinte, você tem alguma edição especial com fotos e uma minibiografia de todas as vítimas, em um tipo de esforço coletivo que mais tarde o editor de uma publicação vai exaltar em uma carta ao leitor como mais um tour de force do jornalismo de qualidade. Quedas de avião, acidentes com ônibus ou barcos, até mesmo vítimas de tiroteios em escolas. O protocolo é sempre o mesmo, menos agora.
O Silêncio
Isso porque o caso da Garoa escancara uma deficiência que o jornalismo prefere muitas vezes não reconhecer, mas já era real no meu tempo de repórter e hoje piorou: a dependência das redações das fontes oficiais. Sem identificação, não se tem como iniciar a apuração jornalística do fato. E sendo muitos dos moradores da Garoa pessoas em situação vulnerável que você não vai achar pesquisando no Google, neste caso – e só neste – não tivemos uma matéria com a inevitável chamada “saiba quem são as vítimas”.
Aliás, chama muito a minha atenção que no dia do incêndio uma repórter da Gaúcha no local conversou ao vivo por seis minutos com um sobrevivente do incêndio que comentou que ele havia conseguido fugir do incêndio por estar no térreo, mas que sua irmã, moradora do terceiro, não havia conseguido. A repórter, pega de surpresa pela informação, dá os pêsames ao entrevistado e segue, tanto ela quanto o apresentador, com o roteiro já previamente pensados das perguntas, todas referentes ao incêndio e ao lugar. Em nenhum momento em seis minutos de entrevista, alguém se dá ao trabalho de perguntar o nome da irmã do sobrevivente (como ele tinha um sobrenome diferente da única mulher identificada até agora entre os mortos, não há como saber se era ela).
Com as primeiras cinco vítimas identificadas na segunda-feira, fico na torcida para que uma redação qualquer em algum lugar tenha mobilizado um ou dois repórteres para tentar nos apresentar essas vítimas com o rigor e a completude desse “jornalismo de qualidade” tão apregoado. Talvez nas edições de fim de semana, se alguém ainda está nisso com a pauta das enchentes tomando conta do cenário num contexto de redações cada vez menores, mais enxutas e com menos repórteres e mais reprodutores de conteúdo.
Anderson Gaúna Corrêa, Dionatan Cardoso da Rosa, Maribel Teresinha Padilha, Julcemar Carvalho Amador e Silvério Roni Martin. É preciso saber seus nomes e tentar entender quem foram, para que se quebre ao menos um pouco o círculo de silêncio e invisibilidade que rodeia pessoas como as que moravam e ainda moram na Garoa. E para que esse círculo que tanto os oprimiu em vida não siga valendo na morte.
Mas só seus nomes não bastam.
Foto da Capa: Cesar Lopes / PMPA
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