“Todx os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todx o tempo do mundo”
São Paulo, SP, Rosewood Hotel, março de 2023, “Ambição 2030”. Palestrantes: Fernando Haddad, Aloisio Mercadante, Marina Silva, entre outros. O Pacto Global da ONU deveria ser um marco na contagem regressiva para implementação empresarial das questões ligadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em 8 movimentos: Mente em Foco, Raça É Prioridade, Elas Lideram 2030, Ambição NetZero, +Água, Salário Digno, Transparência 100% e Conexão Circular.
Os personagens mais notáveis tiveram outros compromissos e não puderam estar presentes no Ambição 2030. Me lembrou um episódio em Capão da Canoa, RS, há uns 20, 30 anos atrás, em que o Chiclete com Banana ia se apresentar em um trio elétrico na frente do Baronda[1]. O trio estava lá, eu estava lá, meu isopor de Skol estava lá (Heineken ainda era um sonho distante!), e o playback rolando aquela Baianidade Nagô no aquece. Passadas 2 horas do horário previsto para o evento, o apresentador regional comunicou que o Chiclete com Banana teve um problema e não compareceria, mas, em compensação, Ana Paula de Terra de Areia[2] animaria a festa com seus teclados. As latas e garrafas começaram a voar, o trio elétrico foi abrindo passagem sobre a multidão, com a polícia distribuindo porrada. O evento foi transferido para data a ser definida por Deus.
Como aquela selvageria ficou obsoleta em 2023, a plateia do Ambição 2030 aplaudiu sem muita convicção as Anas Paulas de Terra de Areia que substituíram o Haddad. Não jogaram latas, nem garrafas no palco (sabiamente a organização o evento preferiu copos descartáveis).
Superado o principal, a apresentadora cumprimentou a plateia: Bom dia a Todos, Todas e Todx, e se apresentou: meu nome é tal, sou parda, tenho o cabelo cacheado, 1,82m e estou vestindo uma saia de oncinha. Apesar das minhas exs sempre me acusarem de não reparar cabelos, unhas, roupas novas e cirurgias de redesignação sexual, confesso que desta vez tinha reparado essas características da apresentadora antes dela falar (sim, o homem evolui!). Como meu sócio conhece minha educação suíça tipo Julinho, se apressou em dizer que ela estava falando para cegos, apesar de não ter cegos na plateia.
Então, naquela manhã nublada, enquanto meu cérebro processava “Ana Paula de Terra de Areia” ao invés de Fernando Haddad, também vasculhava o ambiente em busca dos todx e daqueles que precisavam que os apresentadores se descrevessem fisicamente. Tudo tão moderno, e ao mesmo tempo tão vintage: meu dedo discou o 138 da CRT[3] em um discador de telefone invisível na minha coxa; eu, 11 anos, 1982, no Tele-Amigo: “-Então, tenho 1,80m, 18 anos, sou loiro e estou na faculdade de medicina. Como é teu nome mesmo? Regina. Adora esse nome…”
Daí chegou o segundo destaque no palco, também cumprimentou Todos, Todas e Todx, e se descreveu como branco, da maioria dominante, infelizmente, cabelos claros, meio calvo, calça e camisa social e de altura mediana.
Daí vieram as palestras e debates que iriam impulsionar as empresas a cumprir as agendas da ONU pra 2030. Todos, Todas e Todx concordaram em apoiar a Mente em Foco, a Raça É Prioridade, Elas Lideram 2030, Ambição NetZero, +Água, Salário Digno, Transparência 100% e Conexão Circular.
Supimpa!
Eu esperando a parte o grand finale: como fazer tudo isso?
E de novo Todos, Todas e Todx; e de novo sou alto/baixo, negro/branco, terno/jeans/vestido, dominante/oprimido; e de novo sou a favor de inclusão de minorias, defesa do meio ambiente, autossustentabilidade de vulneráveis; e de novo; e de novo; e de novo. O evento se tornou um disco aranhado que tocava a parte da música que todo mundo queria ouvir.
Na real estava assistindo a novela das 8h: o cara é bacana, boa pinta, politicamente correto, namora a Camila Pintanga, conjuga e flexiona perfeitamente o Todos, Todas e Todx, descreve impecavelmente seu terno de linho que não amassa, nem é brega e rescende decente riqueza humilde e constrangida. O personagem que sem nenhuma explicação plausível dedica a vida aos pobres sem esclarecer de onde vem o dinheiro que permite fazer essa cruzada social.
Eu estava interessado em ouvir sobre geração de carbono a partir de florestas, regras que permitissem povos originários criar renda suficiente para uma vida autossustentável, regularização fundiária de ribeirinhos amazônicos pra obtenção de recursos básicos sem agredir o bioma, qualificação de crédito verdes para o mercado regulado internacional, mas Todos, Todas e Todx estavam ocupados, ocupadas e ocupadx demais se descrevendo e competindo nas melhores intenções para tratar de questões operacionais.
Também queria ouvir sobre como avançar na inclusão social, respeito com minorias, abolição da fome, de verdade sobre os caminhos para atingir os 8 movimentos dos ODS, coisas tão caras para um país com tantos desafios como o Brasil. Dizer-se a favor dos 8 movimentos parece meio óbvio para quem se dispõe a comparecer a um evento dessa natureza.
O Todx e a descrição pessoal para uma plateia sem cegos não deixam de ser o que foi o evento, algo feito pra circular na franja, esteticamente magnífico, politicamente correto, a corte de Luís XIV com uma taça de champanhe debatendo a vida miserável do jardineiro agachado plantando uma rosa em Versalhes. Depois todos podem deitar suas consciências tranquilas nos seus lençóis de 800 fios por terem cumprido sua missão socioambiental.
Ainda não conheci um gay interessado em linguagem neutra, mas todos, sem exceções, querem ser respeitados, ter uma vida feliz com suas escolhas e precisam de medidas concretas para que isso aconteça. Quem ama a linguagem neutra é a extrema direita que a usa na confirmação das suas teorias da conspiração de imposição de uma ditadura gay e sexualização de crianças. Também se fizerem uma pesquisa não será surpresa se os cegos preferirem passeios adaptados ao invés de pessoas se descrevendo em um evento que nenhum deles, aliás, compareceu.
Distante da novela das 8h, os Todos, Todas e Todx são espancados no metrô por causa da sua sexualidade; pequenos proprietários de terras no Amazonas vendem árvores pra sobreviver enquanto o cara de terno de linho ainda não aparece na sua timeline e – a dificuldade de enxergar – não está na ausência de descrição pessoal, mas na falta de Internet.
[1] Bar/Restaurante localizado no litoral gaúcho na cidade de Capão da Canoa. Por determinação judicial foi demolido já que não atendia as regras ambientais mais modernas.
[2] Município no litoral gaúcho conhecido pela produção de abacaxis.
[3] Companhia Riograndense de Telecomunicações – empresa pública regional de telefonia nos anos 70/80.
Foto da capa: Quang Nguyen Vinh/Pexels