A ocupação espanhola do Rio da Prata teve início na segunda metade do século XVI, com a fundação das cidades de Santiago del Estero (1553), apelidada pelos argentinos de “La madre de las ciudades”, San Juan (1562), Mendoza (1562), Tucumán (1565), Córdoba (1573), Santa Fé (1573), Buenos Aires (1580), Salta (1582), La Rioja (1591) e San Salvador de Jujuy (1593). Na margem oriental deste rio, a Colônia do Santíssimo Sacramento (1680) foi a primeira a ser estabelecida, pelos portugueses, o que levou os espanhóis erigir Montevidéu (1724), para garantir seus domínios.
Neste processo, a arquitetura erudita praticada na vasta região platina, de meados do século XVI até o final do primeiro quartel do século XIX, teve origem na transculturação promovida pela Espanha, realizada especialmente por religiosos (com destaque especial para os jesuítas, que trouxeram seus técnicos germânicos, italianos e espanhóis) ou militares [a quase totalidade de diversas regiões da Espanha, e alguns poucos estrangeiros, dentre eles, o francês Jean Barthelemy Havelle (1720-1783) – ou Juan Bartolomé Howell – e o português José Custódio de Sá e Faria (1720-1792), que anteriormente serviram à Coroa portuguesa]. Diz Alberto S. J. de Paula que “Os arquitetos civis – legítimos – foram pouco numerosos: Antonio Masella (1700? – 1774), italiano de Turim, e Tomás Toríbio (1756-1810), espanhol, entre eles; outros também usaram o título, ou foi dado como tratamento habitual, mas cuja formação foi fundamentalmente prática e não acadêmica” (PAULA, 2006, p. 13).
O Rio da Prata alcança seu ápice, no período colonial, tanto do ponto de vista estratégico quanto econômico, com a criação do vice-reinado, em 1776, tendo Buenos Aires como capital.
Tomás Toribio nasceu na Villa de Porcuna, no Reino de Jaén. Foi o único arquiteto egresso da Real Academia das Três Nobres Artes e Belas Artes de San Fernando de Madri, fundada em 1744, a principal instituição da Coroa espanhola, que atuou na região do Rio da Prata. Graduado em 1785, Toribio foi trabalhar com Juan de Villanueva (1739-1811), de quem fora aluno na Academia, nas Reais Obras do Escorial e depois em Menos de Alba (Toledo) e em obras do rei em Argamansilla de Alba, em La Mancha. Nesta época, casou com Josefa Gómez, da região do Escorial. Com ela teve dois filhos, José (1794-1858), o mais velho, que seria seu discípulo, e Antonio, ambos espanhóis (GUTIÉRREZ & ESTERAS, 1993, p. 196 e 198). Foi enviado a Buenos Aires em 1796, com os pedreiros Rafael Orellano e Fulgencio Abril, porém o barco que estavam foi aprisionado por ingleses que o levaram para Lisboa no ano seguinte.
O neoclassicismo chegou tardiamente no vice-reinado do Prata e se expressou em um punhado de obras durante a fase final da dominação hispânica (GUTIÉRREZ, p. 244). Toribio foi o seu destacado representante. Chegou em 1799, a Montevidéu, onde se fixou, ocupando inicialmente o cargo de “Mestre Maior de Arquitetura” da cidade.
Nesta condição concebeu as Casas do Cabildo e Cárceres Reais (1804-1869), que hoje abriga o Museu e Arquivo Histórico Municipal de Montevidéu, à rua Juan Carlos Gómez, número 1632, esquina Sarandí, na Praça Maior de Montevidéu, conhecida também como Praça da Matriz (oficialmente denominada de Plaza de la Constitución). Situa-se no lado oposto à Catedral, simbolicamente colocando frente a frente os poderes divino e real, caracterizando o logradouro como uma praça cívico-religiosa. Foi construído para albergar funções capitulares e carcerárias. Equivalia a aquilo que no Brasil Colônia chamamos de “Casa de Câmara e Cadeia” (prédios existentes em cidades como Ouro Preto, Mariana, Goiás Velho etc., que abrigavam as funções administrativas da povoação, a justiça e a cadeia). O programa determinava, portanto, um edifício seccionado em duas partes, uma destinada ao Cabildo e outra aos Cárceres Reais. “A construção cuja planimetria responde a uma modalidade neoclássica, se organiza de forma simétrica em torno a quatro pátios, estando um dos eixos definido pelo acesso” (ANTOLA, 1996, P. 27). No térreo ficavam os Cárceres Reais e no segundo pavimento (plano nobre), as dependências capitulares. Como nos exemplares brasileiros citados.
A linguagem neoclássica, derivada da tradição clássica espanhola, de expressão austera, que lembra a vertente herreriana [relativo a Juan de Herrera (1530-1597)], versão espanhola do maneirismo itálico, está presente nas fachadas, especialmente na principal. A composição é centrada, isto é, possui um pórtico no eixo de simetria, ladeado por alas adjacentes. Na fachada predominam panos lisos, nos quais se encontram as janelas adinteladas. Estes planos são definidos, horizontalmente através de frisos e da cornija de coroamento, intercalados verticalmente por pares de colunas adossadas no pórtico de entrada e por pilastras nas alas laterais. Se destaca o acesso por meio de pares de colunas superpostas desenvolvendo-se uma composição na forma de arco triunfal, no térreo, com um frontão de coroamento no qual já aparecem símbolos republicanos. O frontão é ladeado por platibandas cheias. Os símbolos republicanos lá estão porque a obra fica pronta na segunda metade do século XIX, quando o território do Uruguai já se encontrava independente da Espanha.
Com a morte de Tomás Toribio, as obras prosseguiram lentamente. Coube ao mestre pedreiro Fulgencio Abril, construir a escadaria interna. Quando o general Fructuoso Rivera (1789-1854) assumiu pela primeira vez a presidência do Uruguai (1830-1834), José Toribio, o filho mais velho de Tomás, foi chamado para construir o segundo piso. Entre 1865 e 1866, foi construído o frontão, a cornija e a platibanda que coroam a edificação. O Cabildo é considerado a obra mais importante concebida por Toribio no Prata.
Outra participação destacada do arquiteto foi na obra da antiga Igreja Matriz, hoje Catedral Metropolitana de Montevidéu, cujo orago é dedicado à Imaculada Conceição, na mesma Praça Maior, mais precisamente na Rua Ituzaingó, número 1359, esquina Sarandí, na Cidade Velha. O templo foi concebido pelo engenheiro militar brigadeiro José Custódio de Sá e Faria – profissional que governou anteriormente a Capitania do Rio Grande de São Pedro (1764-1769) e que projetou a Igreja de Santa Cruz dos Militares (1780-1811) no centro da cidade do Rio de Janeiro e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Viamão (1766-1769). Sá e Faria foi aprisionado pelas forças comandadas por Pedro de Cevallos (1715-1778), quando este invadiu a Ilha de Santa Catarina, em 1777. Sem opção, visto que foi condenado à revelia por tribunal português, concordou em prestar serviços no Rio da Prata. A concepção da Igreja Matriz montevideana, data de 1790, com planta do tipo basilical, com três naves longitudinais e cruzeiro, com cúpula apoiada sobre tambor cilíndrico. Pela nave lateral se acede a uma capela denominada do Santíssimo Sacramento ou Sacrário, de planta circular, também coberta por uma cúpula. A nave central da igreja, é mais alta e ampla que as demais, é coberta por abóbada de berço. As outras duas, são em abobadas de aresta. As obras tiveram a supervisão do engenheiro espanhol José del Pozo y Marquy (1751-1832).
Toribio deu continuidade após a morte de Sá e Faria, adaptando o templo aos cânones acadêmicos então em voga. A fonte de inspiração teria sido a Catedral de Pamplona, obra do arquiteto Ventura Rodríguez, professor da academia na qual se formou Toribio (CHEBATAROFF & Loustau, p. 216). Em 1860, o suíço de formação italiana, Bernardo Poncini (1814-1874), modificou a fachada principal, suprimindo as ordens sobrepostas, “criando uma composição de ordem colossal” (ANTOLA, Op. Cit., p. 30) e substitui os primitivos capitéis jônicos por outros coríntios (CHEBATAROFF & Loustau, Op. Cit., p. 218). A atual fachada (1941-1960), é intervenção realizada por Rafael Ruano (1893-1961), reverteu em parte as modificações feitas por Poncini, inclusive reinstaura a ordem jônica nas colunas. A volumetria simples e sua austeridade também remete ao neoclassicismo de influência herreriana.
Importante lembrar que a edificação era a que mais se destacava na paisagem da cidade colonial, exatamente pela sua volumetria e pela localização, visível tanto do Rio da Prata, como da baía de Montevidéu e das suas áreas periféricas, atributo que foi perdendo na medida que a urbe foi se verticalizando, especialmente no século XX. No entanto, sua presença é fundamental para hierarquizar o espaço da praça onde se situa.
Tomás Toribio também é o autor do projeto da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento (1808-1810), situada na rua del Gobernador Vasconcellos, frente à rua de Portugal, adjacente à Praça de Armas Manuel Lobo, na Colônia do Santíssimo Sacramento. Se sabe que desde a fundação da povoação, em 1680, pelo português Manuel Lobo, a igreja local foi destruída e reconstruída diversas vezes. O edifício, que com poucas modificações chegou aos nossos dias, aproveitou inicialmente, em boa parte, a construção que já existia, incendiada em 1799. Durante a dominação brasileira, em 14 de dezembro de 1823, um raio causou uma explosão que danificou o imóvel, que foi recuperado, entre 1836 e 1841, pelo Frei Domingo Rama, no segundo governo de Venancio Flores (1808-1868).
A planta da igreja, de nave única (cujo eixo segue o sentido leste-oeste), é composta de cinco corpos, sendo, um deles pouco menor, que serve de presbitério. Esta nave é flanqueada por capelas laterais, contidas entre fortes pilastras que lembram contrafortes. Sobre estas assentam arcos semicirculares, que sustentam e reforçam a abóbada de berço que cobre o recinto.
A sóbria fachada neoclássica, simétrica, recuperada na restauração de 1957, liderada pelo arquiteto Miguel Álgel Odriozola (1921-2003), possui um portal de acesso encimado por uma janela retangular que ilumina o coro. Duas esbeltas torres de planta quadrada, rodeadas em todo o seu perímetro por um balcão saliente com varanda, cujo coroamento – de planta octogonal –, culmina com uma cúpula revestida de azulejos, ladeiam o corpo do edifício.
Na rua Piedras (antiga rua de San Miguel), número 526-528, entre Ituzaingó (antiga rua San Juan) e Treinta y Tres (antiga San Joaquín), em um terreno pequeno (apenas 4, 71 metros de frente por 42, 95 metros de fundo), adquirido em 1803, Tomás Toribio projeta e constrói a sua própria residência (1804-1809), que na atualidade abriga o Museu Municipal da construção e a Comissão Especial Permanente da Cidade Velha. Chama a atenção a perícia demonstrada pelo arquiteto para resolver uma residência em um lote tão estreito. Se não bastasse esta dificuldade para projetar, impedindo criar pátios para virar a maior parte dos cômodos, havia ainda uma fonte nos fundos do lote, que o arquiteto deveria dar passagem ao público, o que o proibia de ocupar o piso térreo.
A solução encontrada foi de dividir a casa em duas partes separadas pelo vestíbulo central. Na parte da frente, se encontram o estar, que dá para a rua, e o jantar, separados por uma porta envidraçada – e o escritório, ao qual se acessa diretamente. O setor dos fundos contém dois quartos. Sobre este nível há um segundo andar destinado aos empregados, também com dois quartos.
Toribio usou troncos de palmeira para o entrepiso do setor fronteiro. Duas grossas vigas de madeira, com reforços e uniões de ferro, dão rigidez à parede que a separa do poço de ar e luz. A escada, de madeira, se apoia numa das medianeiras. Os dois pisos da parte destinada a dormitórios se apoiam sobre uma abóbada de tijolo. O teto de cobertura é plano, à portenha, sustentada por tirantes.
Na fachada, no nível do térreo, há duas portas. Uma de acesso para a casa e outra para a fonte. No piso superior, há apenas uma janela rasgada centralizada com balcão de púlpito. Coro a construção uma cornija encimada por uma platibanda cheia. Novamente a sobriedade é a característica da solução adotada.
Como Mestre das Obras Reais, em Montevidéu, consta que teria construído uma galeria para mercado (1804) e realizou um projeto para a Praça maior (GUTIÉRREZ, 2006, p. 226).
Em 1805, foi a Buenos Aires para inspecionar as obras do Coliseu de Comédias, a serem feitas conforme projeto vindo de Madri, do arquiteto Antonio López Aguado (1764-1831), datado de 1804, e indica Francisco José Cañete (-1818) para realiza-las (Idem). No ano seguinte, na mesma cidade, desenvolve um projeto da Casa de Misericórdia, seguindo as orientações que regiam a Casa de Misericórdia de Cádiz, na Espanha. Toribio foi chamado ainda para modificar a fachada da Igreja de San Francisco (1809-1815), hoje Basílica também em Buenos Aires, situada na rua Alsina, número 380, esquina Defensa, no Bairro de Monserrat, igreja projetada, em 1731, pelo jesuíta italiano Giovanni Andrea Bianchi (1677-1740), aqui chamado de Andrés Blanqui. Para materializar esta nova fachada de linguagem neoclássica, contou também com o trabalho de Cañete.
Na cidade de Montevidéu, em 1809, Toribio projetou também uma Casa de Misericórdia e Hospício, para órfãos das invasões inglesas.
Tomás Toribio morreu em Montevidéu, em de 23 julho de 1810. Encerrava a trajetória do primeiro acadêmico a vir realizar projetos no Rio da Prata, por muitos considerado o primeiro arquiteto do Uruguai. Toribio foi o difusor do neoclassicismo por estas bandas. Seu legado pode ser visto especialmente na Cidade Velha onde deixou suas digitais, especialmente no Cabildo e na sua Residência, edificações que aguardam sua visita.
Bibliografia:
ANTOLA, Susana. Catedral Metropolitana (Iglesia Matriz). In: GAETA, Julio C (Coord.). Guía arquitectónica y urbanística de Montevideo. Montevidéu: Intendencia Municipal de Montevideo - Editorial Dos Puntos, 2ª edição, Junho de 1996, p. 30.
ANTOLA, Susana. Museo y archivo histórico municipal. In: GAETA, Julio C (Coord.). Guía arquitectónica y urbanística de Montevideo. Montevidéu: Intendencia Municipal de Montevideo - Editorial Dos Puntos, 2ª edição, Junho de 1996, p. 29.
CHEBATAROFF, Fernando & LOUSTAU, César J. Uruguay: la herencia ibérica en arquitectura y urbanismo. Montevidéu: Ediciones de la Plaza, 1999.
GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitectura y Urbanismo en Iberoamerica. Madri: Ediciones Catedra, Manuales Arte Cátedra, 2ª edição, 1992.
GUTIÉRREZ, Ramón & ESTERAS, Cristina. Arquitectura y fortificación: de la Ilustración a la Independencia Americana. Madri: Ediciones Tuero, Coleção Investigación y Crítica, 1ª edição, 1993.
PAULA, Alberto S. J. de. Quiénes hacen la arquitectura. In: GUTIÉRREZ, Ramón (Ed.); VIÑUALES, Graciela María & PAULA, Alberto S. J. de (Coord.). Arquitectura hispanoamericana en el Río de la Plata: Diccionario biográfico de sus protagonistas. 1527-1825). Buenos Aires: CEDODAL – Centro de Documentación de Arte y Arquitectura Latinoamericana, 2006.
Foto da Capa: Maturino da Luz
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