Em texto anterior, aludi a aspectos constitutivos da atividade humana de trabalho, notadamente no contexto capitalista ocidental em que tal atividade de trabalho vem se exercendo contemporaneamente. Mencionamos, naquele texto, a desigualdade estrutural que ocorre na divisão da riqueza gerada pelo trabalho, divisão esta entre os que detêm a força de trabalho (os empregados) e os que detêm os meios de produção (os patrões). E aí nos referimos ao papel dos chamados atualmente de “gestores de pessoas”, aqueles responsáveis por lidar com esses trabalhadores, em nome da organização que os engaja e os paga. Referimo-nos ao fato de que, dentre tais gestores de pessoas, encontram-se psicólogas e psicólogos do trabalho, acusados frequentemente de exercerem um papel de meros “lubrificantes psicossociais” num contexto de ênfase da produtividade do trabalhador e a sua submissão à organização, ao capital. Findei tais considerações mencionando o mal-estar contemporâneo de colegas psicólogas e psicólogos do trabalho, face a tal acusação, e prometi que retornaria a esse ponto específico. É o que faço agora.
Em meu entendimento, há efetivamente uma vertente da Psicologia umbilicalmente vinculada à missão de ampliar a produtividade do trabalhador, mediante uma ação, denominada na primeira metade do século passado de “psicotécnica”, voltada para o aperfeiçoamento da escolha de trabalhadores mais aptos (e portanto mais competentes), e que provesse meios organizacionais para potencializar ao máximo tais aptidões, como ilustrou historicamente o Fordismo e o Taylorismo. Tal vertente da Psicologia não tinha especial preocupação com o trabalhador enquanto indivíduo (pessoa), a não ser em termos de sua substituição em caso de desgaste temporário ou permanente. O trabalhador, aqui, considerado como insumo.
Surgiram, contudo, abordagens neste domínio da gestão do trabalho humano que propuseram considerar o indivíduo-trabalhador como alguém que se conecta a uma organização de trabalho, de quem recebe prescrições do trabalho a realizar, trabalho esse que se insere no âmbito de um ofício profissional para o qual esse trabalhador foi formado, tripé este (trabalhador – organização – ofício profissional) conducente ao trabalho que é, finalmente, realizado. Aqui, o trabalhador não se limita à condição de mero insumo. Ao se relacionar com outros trabalhadores, no bojo dos coletivos de trabalho que engajam trabalhadores que compartilham tarefas e postos de trabalho, esse trabalhador exercita certo grau de poder de agir na execução de seu rol de tarefas, na medida em que cada trabalhador dispõe, ad hoc, de acervo de possibilidades dentre as quais escolhe o que fará, deixando em suspenso (para outras ocasiões) o que poderia ter feito.
Esta dinâmica de possibilidades de escolha, face ao que foi prescrito, confere ao trabalhador espaço de onde surgem novas possibilidades para a própria organização do trabalho prescrito (desdobramento inovador, ou estilizador), ou formas recebidas pela organização como contrafações, e portanto refutadas, eventualmente com o agravante da demissão desse trabalhador. Ora, em que medida esse paradigma da abordagem da atividade de trabalho, originalmente formulada pelo teórico francês Yves Clot, avança em termos de uma perspectiva menos alienada em relação ao lugar desse trabalhador no Fordismo/Taylorismo? Há quem diga que, apesar dos esforços contemporâneos da psicologia do trabalho, esta ainda permaneceria irremediavelmente circunscrita ao domínio das medidas paliativas do “mudar para não mudar”, na linha de frase famosa de personagem em filme italiano igualmente famoso, Il Gattopardo (O Leopardo), baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Indo mais além, há quem estenda essa crítica à psicologia do trabalho à psicologia inteira (notadamente em sua vertente clínica), na medida em que faz foco sobre indivíduos e respectivas subjetividades, perdendo de vista as dimensões efetivamente cruciais (ou infraestruturais, no dizer dos marxianos) do funcionamento da sociedade.
Ora, a abordagem acima preconizada elege como unidade de análise da psicologia do trabalho a atividade de trabalho, que abarca necessariamente um tripé de sustentação composto pelo indivíduo-trabalhador (SIM, com sua biografia, emoções, afetos, carências e eventual adoecimento), mas também o contexto organizacional (ou de trabalho, para os autônomos) e as especificidades, limites e desafios do ofício profissional em que o trabalhador fez sua trajetória de formação e prática. Não há, nessa perspectiva, redução individualizante do trabalho ao indivíduo. Também não se pretende desconsiderar aspectos relacionados às tensões sociais, políticas e econômicas que atravessam inexoravelmente os três polos do tripé supracitado. Defende-se aqui, parafraseando Lev Vygotsky, que “O Capital” (livro seminal da abordagem marxiana) referencia a história, as ciências políticas e a macroeconomia, mas a Psicologia demandaria seu próprio “O Capital”… (qual seria esta obra de referência em Psicologia Geral seria um terceiro mote neste debate…). Em outras palavras, a Psicologia não pode ser subsumida nos domínios acima aludidos da economia, história e ciências políticas, mesmo que se admita que tais domínios representam atravessamentos inexoráveis. Para colocar esse ponto em termos mais concretos: parto do pressuposto (ou mesmo axioma) que mesmo numa sociedade que tivesse avançado a ponto de ultrapassar os limites do paradigma capitalista, rumo a uma sociedade efetivamente socialista, ainda assim perdurariam os dilemas e desafios da inserção de cada indivíduo-trabalhador em seu coletivo de trabalho, em sua organização. O desafio do atingimento do trabalho bem-feito não pode ser devidamente contemplado de fora para dentro, do contexto social e econômico para o contexto psicológico – mesmo que admitamos mais uma vez que este último é biopsicossocial.
Muitas das críticas ao papel alienado e alienante de muitas das vertentes da psicologia contemporânea me parecem justas. Mas antes de jogar fora a água do banho com o bebê junto, é preciso ter em mente a inexorabilidade do papel da subjetividade e dos processos de construção de sentido para o mundo que rodeia cada uma e cada um. É preciso ter a clareza de admitir que as condições sociais infraestruturais não podem ser desconsideradas na explicação suficiente dos grandes movimentos da História, mas ao mesmo tempo esses movimentos não bastarão para, em si e por si, explicar as colisões dramáticas (apud Georges Politzer) de cada indivíduo às voltas com o desafio cotidiano de ter uma razão suficiente para levantar da cama. Cada uma e cada um sabe que isso é inescapável, pessoal e intransferível. E para mim, isso dá cabimento a uma Psicologia Geral e uma Psicologia do Trabalho relevantes e cruciais para a contemporaneidade.
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