Grande parte das pesquisas voltadas para a representação social do trabalho humano aponta, como resposta dominante à segunda pergunta, a obtenção/manutenção/ampliação do poder de compra, algo central em sociedades capitalistas cujas sístoles e diástoles bombeiam consumo, o que poderia ser traduzido, no linguajar das mesas de bar, em “conseguir pagar os boletos”. Porém, como bem apontou o teórico francês da atividade humana de trabalho, Yves Clot, o trabalho tem uma função psicossocial inescapável. O trabalho é um dos catalisadores contemporâneos de identidade pessoal: “Muito prazer, Fulano de Tal, bombeiro; ou chefe de cozinha; ou professor(a), ou…”. Dessa afirmação para a consideração do trabalho como elemento-chave para a saúde e doença (física e mental) é um pequeno passo.
Haverá quem recorde aqui uma das raízes etimológicas da palavra trabalho, a forma latina tripalium, originalmente um aparato de tortura em forma de “X” para crucifixão de infortunados, da qual teria surgido o termo trabalho em várias línguas neo-latinas (travail em francês, trabajo em espanhol, travaglio em italiano, trabalho em português, dentre outras). Essa percepção do trabalho como fonte de usura do corpo e da mente remonta à tradição bíblica do banimento de Adão e Eva, condenados ao suor do dia a dia e privados do dolce far niente paradisíaco após a transgressão original. Haverá igualmente quem aluda à tradição histórico-cultural ibérica que dividia membros da sociedade entre “os que vivem de renda” e os que “precisam bater ponto”, o que se potencializou com o período escravagista no Brasil, por exemplo. Contemporaneamente, o fenômeno massivo da precarização da atividade de trabalho, sob suas várias formas, retoma essa vertente da consideração do trabalho como fonte de mal-estar, adoecimento, violência, presentes na conhecida síndrome do burnout (esgotamento profissional). Não são poucos, contudo, os estudiosos do trabalho humano que consideram ainda mais perniciosa a condição da exclusão do mundo do trabalho, o desemprego, do que a inserção em trabalho precário. As mesmas pesquisas aludidas acima trazem como opinião corrente dos respondentes ser “menos ruim um trabalho ruim que trabalho nenhum”.
O trabalho humano tem pelo menos três destinatários: em primeiro lugar, um demandante, aquela instância para a qual se presta o trabalho, mesmo que seja imaterial, como no caso do trabalho informal; em segundo lugar, um ofício ou modalidade (gênero) profissional – aquilo que se espera que um trabalhador faça tendo em vista aquilo em que ele se formou/capacitou a fazer; em terceiro lugar, porém não menos importante, o próprio trabalhador, em sua avaliação do quanto faz bem seu trabalho, do quão relevante ele é, do quanto se distancia da condição pouco honrosa de ser um “aspone” (assessor de porra nenhuma). Nesse contexto, a inserção num coletivo de outros profissionais funcionalmente semelhantes, de colegas, é crucial, pois não há trabalho bem-feito assim considerado sem o aval desse coletivo. E é esse coletivo que concretiza, na prática, os limites do que é aceitável como inovação no ofício, e do que é transgressão.
A noção de destinatários do trabalho humano se amplia com a consideração da riqueza, do valor agregado por essa atividade, no contexto capitalista em que vivemos. Apenas uma fração da riqueza gerada pelo trabalho retorna ao trabalhador que a gerou. A partição dessa riqueza entre os que detêm a força de trabalho e os que detêm os meios de produção é estruturalmente desigual, a bem da acumulação que dá sentido e essência ao contexto capitalista acima aludido. Isto muitas vezes tira o sono de muitas e muitos psicólogas e psicólogos do trabalho, acusados de exercerem um papel de meros lubrificantes psicossociais num ambiente desde sempre condenado à precarização primeira – a alienação da atividade de trabalho em prol da produtividade e a submissão do trabalhador à organização e ao capital. Essa questão do mal-estar contemporâneo de psicólogas e psicólogos do trabalho merecerá o devido tratamento, em breve… É fato, somente antecipando esse debate, que muitos “gestores de pessoas” se ocupam em fornecer vales de “ofurô corporativo” (com a licença do autor da expressão, o colega Mário César Ferreira) como atenuadores de exaustão profissional nas sextas-feiras, para o retorno às baias de trabalho nas segundas-feiras subsequentes, numa ação que centraliza na pessoa do trabalhador todos os males e todos os esforços para otimização/manutenção da produção. O mantra do “right man in the right place” (a pessoa certa para a função certa) denuncia essa cooptação de muitos gestores de pessoas, ao passar completamente ao largo da eventual toxicidade da estrutura inteira de trabalho. A oferta ampla de mão de obra permite que a fila ande e a máquina de triturar trabalhadores funcione diuturnamente. Nesse contexto, o que resta de iniciativa minimamente comprometida com o trabalho humano, da parte dos gestores supracitados, em prol do chamado “trabalho decente”? Haveremos de voltar a esse ponto…
Por agora, propomos que trabalhar, ter lugar e reconhecimento nesse mundo, tem centralidade psicossocial inescapável. É pelo trabalho que se desenvolvem instâncias cruciais do psiquismo, no esforço diuturno de entender “o que querem de mim” (o trabalho solicitado) e como responderei a isso (o trabalho realizado). É através do trabalho que o trabalhador consegue, em maior ou menor escala, agregar seu grão de sal a um capital cultural que lhe precede, negociando tal inovação face ao risco onipresente da transgressão ao limite da regra posta. Conseguir essa estilização, mais uma vez recorrendo a Yves Clot e Mikhail Bakhtin, é fonte de saúde mental e desenvolvimento para o trabalhador e para seu ofício. Mesmo num contexto histórico-político que enquadra o trabalho em escala de valores que prioriza a produtividade acumulativa (que muitas vezes sequestra o conceito de mérito), em detrimento do sentido humano maior do trabalho, este último é inescapável, algo entre um direito de cidadania e uma via de constituição pessoal através de pertencimento a um ofício. Mesmo que efetivamente, frequentemente o trabalho volte a aludir ao tripalium torturante (haja vista o adoecimento e suicídio vinculados ao trabalho), aqueles outros que têm o privilégio de um ofício com sentido psicossocial nas duas mãos (do trabalhador para o ofício e vice-versa) sabem do quanto devem, para o próprio eixo pessoal, ao trabalho onde ligam várias tomadas. Mesmo que concordemos que nesse mundo real as coisas vêm juntas e misturadas, como comentava um catador de lixo entrevistado num desses dias; para esse trabalhador, ter a vivência do sentido, da importância e da própria contribuição ao trabalho aquece o coração do trabalhador, mesmo que uns e outros virem a cara para aqueles que ganham a vida catando “material descartado” – no linguajar revisitado do entrevistado acima…
Trabalhar para fazer sentido (além de pagar os boletos), trabalhar para atender às instâncias de demanda – mesmo sabendo que muitas delas são predadoras – tudo junto e misturado.
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Foto da Capa: Julia Nagle / Pimp My Carroça