Optando por manter um sistema que disfarça situações constrangedoras, dissimulamos o – estarrecedor, inaceitável, inadmissível, pecaminoso, maldoso, vergonhoso, obsceno – trabalho escravo com a denominação de trabalho em condição análoga à de escravidão.
“Trabalho escravo” está diretamente ligado ao sistema escravocrata, do qual legalmente nos desligamos em 13 de maio de 1888.
A “condição análoga” sugere uma semelhança entre coisas diferentes.
Na minha utopia, queria poder dizer que em 2022 nenhuma pessoa é equiparada à coisa.
Porém, as notícias recentes são outras.
O texto de Gabriela Moncau, publicado em 09/07/2022, denuncia que “A mulher da casa abandonada” traz ponta de iceberg da escravidão doméstica contemporânea – DMT – Democracia e Mundo do Trabalho em Debate (dmtemdebate.com.br).
O Tribunal Superior do Trabalho, em 08/07/2022, noticia que Empregada doméstica que viveu 29 anos em situação análoga à escravidão receberá R$ 1 milhão – TST. Essa empregada foi impedida de estudar, participar de eleições e nunca recebeu os salários de forma integral, tendo descontados valores de produtos de higiene pessoal e de alimentação.
O Ministério Público do Trabalho, referindo-se às operações realizadas durante a pandemia da Covid-19, aponta, dentre as irregularidades flagradas, o trabalho escravo doméstico. O artigo Escravidão Moderna, arquivo_pdf (mpt.mp.br), destaca o aumento da vulnerabilidade social de vários trabalhadores e a possibilidade de aumento de abusos, no âmbito doméstico, em função do teletrabalho resultante da pandemia.
E quem são, majoritariamente, as pessoas prestadoras desse tipo de serviço?
Mulheres negras, segundo estudo do IPEA de 2019, TD 2528 – Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínual (ipea.gov.br).
A título de curiosidade, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, a partir de 2003, com a redação da Lei 10.803, conceitua o crime de “Redução a condição análoga à de escravo” como sendo aquele que reduz alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
A pena prevista? Reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência, aumentada de metade, se o crime for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Ainda, o legislador prevê que nas mesmas penas incorre quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Nenhuma pena ou indenização, contudo, indeniza, repara ou repõe uma vida perdida nessa situação.
Por isso, dando a volta nessa cultura “legal”, destaco MULHERES NEGRAS que saíram do lugar oferecido para ocupar o lugar escolhido, como a Nina Silva, CEO e uma das fundadoras do Movimento Black Money, a Marianne Gaspary, cofundadora e diretora criativa da Patuá Estúdio, a Alyne Jobim, sócia fundadora da Iwosan, e a Luciane Brito, fundadora da Gurizada Faceira, para citar apenas algumas. Outras podem ser encontradas em Mulheres negras empreendedoras: tudo sobre mulheres pretas e negócios (bagy.com.br) e Conheça as 21 empreendedoras Negras da Lista da Forbes (geledes.org.br).
E lembro que na Odabá, Associação da Afroempreendedorismo, um dos eixos de desenvolvimento trata da ELIMINAÇÃO DAS CRENÇAS LIMITANTES. Crenças que nos impuseram limites que não existem. Crenças que talvez tenham impedido alguma de nós de ocupar espaços que desejamos.
Nesse eixo de trabalho buscamos eliminar algo que não é nosso para nos valer da força ancestral que carregamos de milhares de mulheres negras que já empreendiam sem dizer que o faziam, para nos encontrar em lugares que ainda não contam com a nossa presença e aproveitar espaços, como esse, possibilitados por pessoas não negras que pretendem fazer diferença, afinal, algumas portas, como dizemos, só se abrem por dentro.
*Denise Ribeiro Denicol é mãe de um filho adulto e outro bebê, advogada especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, fundadora da Denise Denicol Consultoria Trabalhista, faz parte da diretoria da Odabá e é gestora do evento Afro’N’Talks.