Tive uma aula por Zoom com Gilles Lipovetsky (foto da capa) no curso Psicanálise do Século XXI, na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado/SP), no ano passado, e mais oito aulas, gravadas, na pós-graduação online em Ciências Humanas, que concluí no mês passado pela PUC (Pontifícia Universidade Católica/RS). É um filósofo que tem no coração o lema Liberté, Égalité, Fraternité. Em síntese, ele aponta que precisamos fazer a transição de uma sociedade que há séculos foca na produção de bens de consumo para uma sociedade que dará valor à produção de bens humanos. Isso significa cuidar do outro, cuidar da vida e ter de bônus a tão almejada felicidade. Perguntei no chat da aula como essa ideia poderia ser debatida/ampliada na sociedade, uma vez que nem governos e nem a grande mídia parecem se interessar muito por assuntos desse quilate. Lipovetsky respondeu que os governos deverão dar prioridade para a formação de educadores, com disposição para remunerar bem essa atividade, ao contrário do que acontece ainda hoje. E para ampliar horizontalmente o debate na sociedade, ele sugeriu a produção de programas de TV, em inúmeros formatos e situações, como a transmissão de uma aula, por exemplo.
Sincronicidade, conceito criado por Jung, é uma coisa muito séria e linda, que comprovo frequentemente. Naquela mesma manhã da aula com Lipovetsky (um sábado, 05.08.2023), recebi a newsletter do Canal Meio com uma entrevista com o filósofo Michael Sandel, que estava no Brasil para conferência no Fronteiras do Pensamento. Ele contou para a jornalista Flávia Tavares sobre uma experiência que fez em Harvard, onde ensina filosofia política. “Filmamos meu curso de Harvard sobre Justiça, que mostra alunos debatendo uns com os outros e comigo, e fizemos isso antes de haver essa profusão de cursos online. Colocamos a íntegra na televisão e online. Gratuitamente — para qualquer pessoa em qualquer lugar ver, a fim de mostrar que a sala de aula de Harvard pode ser aberta, um bem público, e não apenas um privilégio privado. Nunca imaginamos, quando começamos, que dezenas de milhões de pessoas iriam querer assistir a palestras sobre filosofia. Mas foi isso que aconteceu. O próximo passo neste experimento era criar um diálogo de ida e volta. Não apenas semear debates interessantes para as pessoas assistirem, mas permitindo que pessoas de todo o mundo participassem deles. Fizemos outro experimento em um projeto com a BBC. Criamos uma série chamada The Global Philosopher, em que eu entrava num estúdio que tinha uma espécie de parede digital, com 60 telas, com pessoas de diferentes países, de todos os continentes. Em tempo real, debatemos, com pessoas de 40 ou 50 países, algumas das mais difíceis questões que enfrentamos hoje na vida cívica: liberdade de expressão, discurso de ódio, quem deveria arcar com os custos de mitigar as mudanças climáticas, imigração e fronteiras nacionais. Esses são debates que não ouvimos com frequência, apenas na forma de disputas partidárias. Mas tentamos usar a tecnologia para ver se poderíamos reunir pessoas de diferentes países, culturas e origens para debater essas questões. Estes são apenas dois exemplos muito pequenos. A tecnologia torna possível, hoje como nunca antes, criar plataformas para um discurso público global genuíno, mas não podemos deixar isso para o mercado, para essas empresas movidas pelo lucro. Aqueles dentro da sociedade civil, da educação, da mídia, quem se importa com promover um melhor discurso público, têm a responsabilidade de mostrar que a tecnologia pode contribuir para a democracia em vez de corrompê-la.”
É o que falou também Lipovetsky. Mas, ao menos aqui no Brasil, sobressai a dificuldade de nos conectarmos. Nas universidades, por exemplo, hoje se oferecem centenas de cursos online, mas o diálogo é escasso ou mesmo nulo. Talvez os professores estejam sobrecarregados com tal demanda online, além de suas aulas presenciais e, muitas vezes, ainda outras ocupações para complemento de renda – gravam burocraticamente seus conteúdos e se recusam ao diálogo. No cotidiano, seguimos nas conversas limitadas nas redes sociais, que são mais distração do que conexão, do que falei na coluna da semana passada. Mesmo as pessoas que se acreditam imbuídas do propósito do diálogo, raramente o realizam na prática. Assim, me parece um problema estrutural. Ouvir, debater, trocar ideias exige disposição, atenção e tempo, lógico. Não temos essa cultura.
Como escreveu Flávia Tavares, na abertura da entrevista com Sandel, fomos nos afastando uns dos outros e nos aborrecendo com a trabalheira que dá o processo democrático de debate. “Perdemos, em boa medida, a noção de que o outro, seja ele quem for e seja lá o que pense, é um cidadão tanto quanto nós — e é com esse outro que precisamos costurar o tecido social, cultural e político que mantém as democracias funcionando.” A jornalista explicou que esse distanciamento tem, entre várias causas, ao menos três que Michel Sandel explora em sua obra. “Uma é de teor econômico. As grandes corporações foram ficando tão grandes que não podem mais ser questionadas politicamente, e o efeito disso é que o cidadão se sente cada vez menor, mais irrelevante. Outra, correlata, é sobre como as grandes corporações de tecnologia e mídias sociais, dirigidas tão somente pela lógica do consumo, transformaram o debate público num mercado de ressentimentos. Uma terceira é consequência do uso por extremistas desse rancor: a ideia de se debater convicções morais publicamente tornou-se tóxica. Para Sandel, é hora de rever esses três conceitos”, escreveu.
Sem dúvida, ainda mais sob a ótica da urgência climática, é para ontem rever esses conceitos e partir para o diálogo. Mas um diálogo de verdade, como defendia David Bohm – um dos físicos teóricos mais importantes do século XX, com ideias não ortodoxas à teoria quântica, neuropsicologia e filosofia da mente – que publicou seus pontos de vista sobre esse desafio em uma série de artigos, entre 1985 e 1991. Vejamos o que ele fala de um dos eventos, em Mickleton, na Inglaterra, quando emergiram dois novos aspectos do Diálogo: a noção de significado compartilhado em um grupo e a ausência de um propósito ou agenda pré-estabelecidos. “O fim de semana começou com a expectativa de que haveria uma série de palestras e discussões informativas, com ênfase no conteúdo. Aos poucos, emergiu o sentimento de que se tratava de algo mais importante – o despertar do processo do diálogo em si mesmo, como um livre fluxo de significados entre todos os participantes. No começo, as pessoas expressavam posições fixas que tendiam a defender, mas em seguida tornou-se claro que era fundamental manter o sentimento de amizade no grupo e não apenas sustentar pontos de vista. Essa amizade era difusa, no sentido de que seu estabelecimento não dependia de relacionamentos interpessoais estreitos entre os participantes. Assim, uma nova espécie de mentalidade começa a surgir, com base no desenvolvimento de um significado comum que está em constante transformação no processo do diálogo. As pessoas já não estão basicamente em oposição, nem se pode dizer que estejam interagindo. Em vez disso, elas participam desse âmbito comum de significados que se mostra capaz de desenvolver-se e mudar constantemente. Ao longo desse desenvolvimento, o grupo não tem nenhum objetivo pré-estabelecido, embora a cada momento possa surgir um propósito que pode mudar livremente. Desse modo, o grupo começa a se empenhar numa nova dinâmica de relacionamentos, da qual nenhum interlocutor é excluído. O mesmo acontece com qualquer conteúdo específico. Até o momento, só começamos a examinar as possibilidades do diálogo no sentido aqui indicado. Contudo, se formos mais longe nessa direção, pode-se abrir a perspectiva de transformações, não apenas nas relações entre as pessoas, mas também na própria natureza da consciência da qual se originam tais relações”. *
*Diálogo – comunicação e redes de convivência, de David Bohm. São Paulo: Palas Athenas, 2005.
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Foto da Capa: Acervo da Autora.