Me ver pobre,
Preso ou morto
Já é cultural.¹
No livro Tornar-se negro, a psicanalista Neusa Santos Souza (ilustração da capa) aborda, entre tantas questões, a do que chamou de mito negro. Para isso, recupera a noção de mito de Roland Barthes e Claude Lévi-Strauss, a partir das quais elabora e decanta a seguinte ideia:
“O mito é uma fala, um discurso – verbal ou visual –, uma forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação ou pessoa. Mas o mito não é uma fala qualquer. É uma fala que objetiva escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história, transformá-la em ‘natureza’. Instrumento formal da ideologia, o mito é um efeito social que pode se entender como resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas.”²
Neusa Santos Souza indicava o quanto este mito estava incrustado em nossa formação social, impondo-se como desafio a toda pessoa negra que rejeita um destino de submissão. Além disso, um desafio concernido também aos não-negros, já que o mito negro é feito de imagos fantasmáticas compartilhadas. “O negro de quem estamos falando é aquele cujo ideal do ego é branco” (p. 65), dizia a psicanalista, certamente advertida da pressão mais identitária que existe: a branca. Ainda que este grupo tão poucas vezes se deixe ler como identitário, já que objetiva ser o universal, a culminação do neutro a que todos os outros grupos se dirigem, o ponto de referência, o fiel da balança. Isto inclui – ademais do achatamento das questões de raça – as que compreendem gênero, sexualidade e capacitismo.
A forja da universalidade escamoteia a branquitude, assim como escamoteia o patriarcado. Neste último caso, aparece, por exemplo, naquilo que quase sempre quer nos levar à língua frases que iniciam com “o homem” em vez de “a humanidade”. Efeito da pregnância de um ideal de humano cujo modelo standard é um homem cis e europeu. Este resíduo linguístico é uma das marcas da hegemonia patriarcal e branca.
Em relação à raça, no Brasil, basta um exercício mínimo de honestidade intelectual para entender que não há nada de neutro nas imagens evocadas por “um empresário”, “um traficante”, “um médico”, “um jogador de futebol”, “um arquiteto”, “um juiz”, “um porteiro”, “um político” e um longuíssimo etc. Cada uma dessas evocações despertará imagens que não são transparentes.
Da mesma forma, em relação aos direitos das mulheres, será que estamos no mesmo tom de reivindicações? Há, na maior parte das vezes, mulheres e mulheres negras. Mulheres e mulheres indígenas. Mulheres e mulheres LGBT. Mulheres e mulheres com deficiência.
A que mulheres me refiro quando digo apenas “mulheres”? Nomeio aquelas que, assim como os “homens”, têm o direito de outrificar, transformando histórias de opressão em natureza inescapável. O outrificado é uma anomalia que não se curvou à normalidade, à universalidade. Enquanto só ao hegemônico restariam as categorias do ascenso cultural, eles pensam. Esquecem que “me ver pobre, preso ou morto” não é natural.
¹Trecho de Nego drama, música dos Racionais MC’s, de 2002.
² Santos Souza, Neusa. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. Publicado originalmente em 1983.
Todos os textos de Priscilla Machado de Souza estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução do Facebook