É com muito pesar que escrevo essa coluna. Uma parte de Porto Alegre morreu no último dia dois de outubro quando a empresa Carris foi privatizada. Nascida em 1872 como companhia de bondes, em poucas décadas implantou o sistema de transporte elétrico sobre trilhos mais eficiente que essa cidade jamais viria a ter outra vez. Um sistema de linhas radiais e circulares que, com apenas uma troca de bonde, se chegava a qualquer ponto da cidade. O Abrigo da Praça XV era a estação central por onde todos os bondes passavam. Não havia fim-da-linha no centro da cidade, apenas nos bairros.
A cidade foi crescendo, mas ninguém se lembrou de ampliar as linhas ou investir em atualização tecnológica. A opção pelo petróleo, asfalto e automóveis levava a cidade por outros caminhos e a Carris foi deixada à míngua como coisa velha, superada. Nos anos 1970, o interventor municipal Thompson Flores da Cunha, um rodoviarista de primeira hora, cercou o centro da cidade com uma perimetral com túnel e viadutos. Os bondes já não tinham como passar por ela e morreram. A solução foi jogar asfalto por cima dos trilhos e substituir as antigas linhas por ônibus. Os jornais da época estampavam o feito com orgulho provinciano, dizendo que a modernidade batia à nossa porta. Era o progresso chegando. Transporte sobre trilhos era coisa do passado.
Na mesma época e lógica, os trens de passageiros que cobriam todo o estado também desapareceram. As duas estações ferroviárias de Porto Alegre foram postas abaixo.
A Carris, agora uma empresa de ônibus, ainda pública, não se dobrou e deu um jeito de se tornar empresa modelo. Chegou a ser considerada a melhor companhia de ônibus do Brasil em 1999. Mais tarde, tratada como irmã bastarda das consorciadas que dividiram a cidade em três zonas de desfrute de mercado, coube a Carris enfrentar as engarrafadas linhas transversais. As irmãs preferidas, privadas, ficaram com as rotas dos antigos bondes correndo, agora, em corredores exclusivos, garantindo rentabilidade aos seus negócios.
Operar 10% das linhas foi o consolo dado à empresa que já tinha sido a principal gerenciadora do transporte de Porto Alegre. Mas a Carris não perdeu a pose ao cumprir o papel de encurtar a jornada diária dos trabalhadores que os consórcios preteriam. Seus ônibus faziam inveja aos passageiros das outras empresas. A população percebia a diferença no conforto, no asseio, ar condicionado e acessibilidade. Desaforo demais para a iniciativa privada. Isso tinha que acabar. E acabou.
Com tanto vai e vem na distribuição de empresas, o que é revoltante é que as linhas seguem sendo as mesmas de sempre. Há uma espécie de reserva de mercado histórico. Todas tem terminal no centro, não podem seguir em direção ao bairro da concorrente. O passageiro que pague duas passagens, o centro que aguente o congestionamento de ônibus. Para piorar, num plano paralelo, e com a mesma modalidade de reserva de mercado, empresas metropolitanas carregam seus passageiros cativos diretamente ao centro da cidade. Não podem pegar passageiros no caminho. Mais terminais desnecessários.
Porto Alegre fez, sem dúvida, bons planos de negócios para as empresas, mas não para os usuários. Nada de reformular e integrar linhas e modais diferentes. A execução de um plano de mobilidade urbana completo é coisa desconhecida por aqui. Não que falte competência e técnicos qualificados, pelo contrário. Diagnósticos precisos e de qualidade é o que não faltam, mas toda boa proposta esbarra no conflito de interesses jurisdicionais, políticos e empresariais.
A impossibilidade do catamarã prestar serviço integrado com os ônibus é só um dos exemplos. Depois de décadas de insistência para que a opção óbvia de utilização das águas do Guaíba fosse utilizada para o transporte público veio a autorização para esse serviço. Mas, atenção, apenas entre Guaíba e Porto Alegre. Absurdamente, não há catamarã municipal. E, quando houver, ele será paralelo ao intermunicipal! A irracionalidade é tão grande que não pode ser inocente. Da mesma forma, os lotações não são usados como complemento dos percursos dos corredores de ônibus. Não, todos concorrem entre si. A questão é, sempre, quem fica com o dinheiro do passageiro. Essa é a tônica que impede o planejamento sistêmico dos transportes em Porto Alegre.
Não seria melhor, então, que uma única empresa cuidasse de todo o sistema de mobilidade da cidade? Lógico que sim! Ao contrário do que pensa nosso prefeito, a solução da mobilidade urbana não passa pela repartição do sistema entre empresas. É o contrário, ela passa pela fusão de todas em uma única empresa para gerir o transporte público como um todo. Pela lógica e competência, a Carris é que deveria absorver todas as outras.
Mas lógica não combina com ideologia neoliberal. É preferível a prefeitura transferir dinheiro para as empresas privadas mensalmente para manterem minimamente um sistema de baixa qualidade do que reformular todo o sistema ganhando em escala, conforto e qualidade. Até quando vamos viver essa bobagem ideológica de que o transporte público tem que ser privado?
Tem coisa melhor do que uma cidade onde a gente pode se locomover de um lado para outro com facilidade, livre da preocupação de onde estacionar o carro? Cidades menos poluídas, mais vivas e integradas. A Porto Alegre da Carris era assim, tanto que a maioria dos prédios nem garagem tinha. Tudo funcionava muito bem até que as garagens no centro da cidade passaram a ser incentivadas e as residenciais obrigatórias. Uma decisão deliberada a favor do automóvel.
Se pensarmos nas garagens, vias, viadutos, controle do tráfego, petróleo… dá para imaginar a montanha de dinheiro que foi investida no sistema individual de transporte? O mesmo dinheiro não teria enchido a cidade de linhas de metrô e outros meios de mobilidade pública? Claro que sim.