Um cachorro resgatado das enchentes que, no colo de um voluntário, segue remando com suas patinhas, porque o trauma lhe faz agir e entender seu entorno como se ainda estivesse na água. É disso que se fala ao tentar dar um contorno ao emocional de todos os envolvidos nessa tragédia climática que o estado do Rio Grande do Sul vem enfrentando. Estamos todos remando, mesmo quem já saiu da água, mesmo quem por sorte ou privilégio nunca chegou a estar na água e tem ainda um teto, comida, água e seus pertences a salvo. Não há ninguém ileso a esse trauma coletivo que escancara a vulnerabilidade e a emergência climática que, apesar dos anos que vem sendo evidenciada e cientificamente alertada, é negada – pelos políticos por interesses econômicos, e pela população por negação estruturante mesmo.
Confrontar-se com essa realidade da maneira violenta e a olho nu como vem ocorrendo nas últimas semanas expõe o psiquismo a um excesso. Estamos todos com os diques abertos (a analogia nunca foi tão ironicamente verdadeira). Cada um com seu arsenal e aparato psíquico prévio, seus buracos, zonas menos saneadas emocionalmente, além, obviamente, do arsenal econômico e estrutural que não pode jamais ser menosprezado. Morar em uma zona nobre e alta da cidade, livre dos riscos de alagamento, não é escolha nem oportunidade, mas sim possibilidade e privilégio.
Mas o que vem se anunciando, ainda silenciosamente, é o pós trauma imediato e a médio e longo prazos. Quando a água baixar, quando os voluntários cansarem, quando comércio e escolas precisarem – porque precisam – retomar suas atividades, quem sobra para acompanhar o trauma que emerge das águas?
Tendo atuado por anos como psicóloga clínica hospitalar na área da Oncologia, atendi muitos pacientes e familiares no contexto da internação e ambulatorial. De toda gama de casos atendidos, diagnósticos e condições emocionais prévias, havia uma questão específica que sempre surgia mais ao final do tratamento médico e psicológico: e agora? Agora que o “pior já passou”, agora que o tratamento está acabando e supostamente a cura chegou, quem há de me olhar? Enquanto a crise está no seu auge as pessoas são rodeadas de cuidados, telefonemas, demonstrações espontâneas de afeto e proteção por parte de amigos, familiares, colegas de trabalho. Há um tratamento, uma equipe hospitalar ao redor, medicações. Quando tudo passa, o que resta? Há uma paradoxal tristeza junto ao alívio de vencer um tratamento oncológico, que passa justamente por essa perda de cuidado, além da óbvia incerteza quanto ao futuro.
Coloco essa questão em relação ao momento atual do Rio Grande do Sul. Quando tudo “passar”, quem vai restar? Os voluntários precisam retornar às suas tarefas, a comoção nacional passa, William Bonner vai embora. E quem, como o pequeno cachorro do início desse texto, seguir remando e se sentindo alagado mesmo já estando em terra firme? Muitos dos meus acompanhamentos psicológicos no hospital iniciavam justamente na iminência do término do tratamento médico, quando supostamente seria o momento de alívio. É muito mais fácil para as pessoas ao redor “virarem a página” e ainda por cima cobrarem de quem viveu o trauma a mesma atitude, quando se sabe que as sequelas de um trauma – especialmente um trauma coletivo – persistem para além do tempo em que o estímulo traumático cessa.
Em nosso psiquismo, as marcas sempre vêm depois. Cuidemos de nosso trauma coletivo com cuidado, com atenção, desde o dia zero, como tem sido, mas muito, muito mesmo depois do tão desejado “tudo voltar ao normal”. Porque assim como na Psicanálise, na vida não existe normalidade. Existe a certeza de que nada nunca permanece o mesmo, e que o trauma sempre nos redefine, e o destino que será dado a ele é um processo.
A gente ainda vai nadar muito em terra firme até entender que estamos a salvo. Ou melhor, até entendermos que nunca estaremos a salvo a menos que algo coletivo, político e social seja pensado e realizado com urgência.
Foto da Capa: reprodução de redes sociais
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