Pois não é que o projeto do trem bala entre Rio e São Paulo está de volta? Li a notícia de seu renascimento distraidamente até que o fato de um colunista de Zero Hora ter chamado o projeto de piada despertou meu interesse pelo assunto. Piada? Piada, e de mau gosto, é o que esse país fez ao sucatear a malha ferroviária que já foi o principal meio de transporte de passageiros e de carga. Qualquer atitude no sentido de reverter esse quadro desolador merece ser levada a sério.
Para começar o apelido de trem-bala não é adequado, pois trata-se de trem de alta velocidade, que roda em velocidades próximas aos 300km por hora. Trem bala é coisa de japonês e chinês. Esses usam tecnologia maglev, são trens que levitam magneticamente e rodam a 600 km por hora. É outro mundo. Infelizmente a mania de grandeza brasileira deu nome inadequado ao projeto e favoreceu uma crítica mais destrutiva do que a necessária. Sim, também sou crítico ao projeto da forma que está proposto, mas vejo com bons olhos a retomada do assunto trens de passageiros. A inexistência desse meio de transporte num país de dimensões continentais nos coloca num nível vergonhoso de republiqueta que se vergou ao poder da indústria automobilística.
O trem de alta velocidade nasceu na França, o famoso TGV, inaugurado em 1981. Tive o privilégio de andar na inauguração da linha Paris-Lyon. A linha passou a competir com vantagem contra a ponte-aérea entre essas duas cidades, considerando a praticidade de sair e chegar no centro de cada uma delas. Hoje essa modalidade de trem é uma coisa muito comum na Europa, ligando dezenas das principais cidades. Dividem linhas com trens “comuns” que andam a 160km por hora. É como se em cinco horas nós, porto-alegrenses, chegássemos a Montevidéu, no centro da cidade. Com o TGV gastaríamos em torno de três horas. Fantástico, não?
Entendo que pura e simplesmente enterrar a proposta do trem dito bala no Brasil é afastar uma oportunidade de discutir o renascimento dessa modalidade de transporte e favorecer o rodoviarismo dominante. Se o país quiser se reconciliar com a racionalidade de seus meios de transporte de cargas e passageiros precisa investir, e muito, em trens e transporte fluvial. A predominância do transporte modal rodoviário é assustadoramente insensata e não tem comparativo em países de economia forte. É preciso mudar isso.
Mas se sou a favor de levar a sério a proposta em pauta, tenho contribuições críticas a fazer. Questiono: por que iniciar pelo trem de alta velocidade? Por que não pensar, em uma primeira etapa, numa rede nacional de trens de passageiros a uma velocidade média de 160 km por hora ligando as capitais? Uma segunda etapa desse plano ferroviário poderia sim evoluir para o trem de grande velocidade e mais adiante, quem sabe, um maglev entre Rio e São Paulo. Getúlio Vargas, nos anos 1930, fez seu plano Rodoviário Nacional e, graças a ele, hoje podemos sair de Jaguarão e chegar em Fortaleza pela mesma BR 116 – para citar um bom exemplo de visão nacional de longo prazo. O Plano Rodoviário de Getúlio levou décadas até ser concretizado, mas estava traçado, era uma questão de tempo. Pena que ele não dedicou o mesmo empenho para um Plano Ferroviário Nacional. De lá para cá, a quilometragem de linhas férreas só fez diminuir.
A bitola do Rio Grande do Sul segue sendo diferente da dos países vizinhos, e por consequência dos demais estados, para nos “proteger da invasão dos exércitos inimigos”. Não é incrível que isso ainda seja assim?
Seria mais adequado e racional do que ligar unicamente São Paulo e Rio com um moderno meio de transporte pensar em um plano de unificação das bitolas de todo país – sim, nem isso temos —, retificando trechos, fazendo melhorias, construindo estações, enfim, investindo em um sistema orgânico que permitisse que saíssemos do centro da capital A para chegarmos a capital B, passando por cidades e estações intermediárias importantes como já tivemos no passado e perdemos pela pressão da indústria automobilística.
Se é uma vergonha o que fizemos com nossa malha ferroviária, e aí podemos incluir os bondes urbanos, não é lícito atacar o projeto do trem bala do jeito que estão fazendo. É fato que é errado esse jeito brasileiro de tirar o atraso, de dar a volta por cima. Sempre temos que sair do pior para o melhor, sem intermediários. Talvez seja hora de entender que para chegar lá é melhor cumprir etapas, e isso vale para o planejamento de outras áreas também. Só assim conseguiremos avançar e, quem sabe, por que não, termos um verdadeiro trem bala entre Rio – São Paulo.