A proposta de uma ferrovia Porto Alegre/Gramado, originalmente concebida no fomento ao turismo, ganha novo apelo com a tragédia que nos assola: de transporte adequado às demandas climáticas que estamos enfrentando e ainda viremos a enfrentar. Não há mais como fugir dessa realidade. O aquecimento global ainda está longe de ser solucionado e já é passada a hora de fazer as escolhas certas.
A ferrovia foi apresentada há pouco mais de um mês por Renato Grillo Ely, sócio-administrador da SulTrens¹, que diz ter tido ótima aceitação na Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado. Os estudos levaram mais de dois anos, dentro do estabelecido nos marcos legais federal e estadual. “O projeto é bom. Consistente, dentro das melhores técnicas da engenharia. As tecnologias estudadas são competentes para vencer as rampas observadas no caminho.” O engenheiro destaca que o prazo, especialmente na assinatura do Contrato de Adesão (termo formal de aprovação do Requerimento de Autorização), por óbvio, demandará maior tempo do que o estimado, mas a sua expectativa é de absoluta confiança.
“Com a catástrofe que se abateu sobre o estado, não há como ser diferente. Estamos acompanhando os esforços do Governo e já manifestamos nossa solidariedade e disponibilidade voluntária para ajudar naquilo que estiver ao nosso alcance. É a maior tragédia já ocorrida nesse país, em seus pouco mais de 520 anos. Mas a têmpera do gaúcho garantirá que o estado resultará mais forte e mais unido”, pondera Ely.
Com base na Lei das Ferrovias, de 2021, que autoriza a implantação e operação ferroviária pelo setor privado, a SulTrens demarcou a linha Porto Alegre a Gramado com um trajeto de 84 quilômetros. Terá capacidade para cerca de 250 lugares e o tempo de viagem está estimado em apenas uma hora. “A eficiência do transporte de pessoas e mercadorias contribui para a melhoria dos deslocamentos, reduzindo tempos de viagem e custos. E, hoje especialmente importante, contribui também para a redução de emissões de carbono”, enfatiza Ely.
Com larga experiência em projetos ferroviários, o engenheiro comenta: “O Brasil, nos anos 50, priorizou as rodovias em relação às ferrovias. Erro histórico. Nas grandes distâncias e nas cidades. Porto Alegre, onde nasci, cresci e me formei, tinha uma rede de veículos leves sobre trilhos, chamados de bondes, operados pela Companhia Carris, que eram um espetáculo. Operavam em linhas conectando o centro a todos os bairros da cidade. Contudo, seguindo a tendência das rodovias que marcou o país, nos anos 60 foi decidido acabar com os bondes”.
Há mais de uma década, várias cidades do mundo retomaram os bondes como alternativa sustentável de transporte urbano ou de linhas de turismo e modernizaram seus sistemas. Bruxelas, Paris, Berlim, Milão, Viena, Varsóvia, Basileia, Zurique, Praga, Budapeste, Helsinque, Lisboa, Porto, Hong Kong, São Francisco e Toronto, entre outras. Em Porto Alegre, a hora é extremamente propícia para se retomar também os bondes. Logicamente, novos estudos devem ser feitos, levando em consideração os alagamentos na cidade. Haja visto o que aconteceu com o Trensurb, com interrupção da circulação dos trens e, em especial, a estação Mercado Público totalmente submersa e danificada pela enchente.
Na cidade de Gramado, o trem impulsionou até mesmo a sua constituição como município. Inicialmente, em 1903, uma linha ligava Novo Hamburgo a Taquara. A estação do bairro Várzea Grande foi inaugurada em 1919 – nessa época, Gramado ainda era quinto distrito da cidade de Taquara – e a do Centro foi finalizada em 1921. Foi a primeira linha ferroviária construída no Rio Grande do Sul e a sétima do país.
A viagem de Porto Alegre a Gramado durava seis horas. O trem seguia por mais duas horas até Canela. A Serra Gaúcha estava sendo muito procurada pela fama da cura da coqueluche – eram muitas as crianças com essa doença na época. Haviam poucos hotéis e logo se caracterizaram os veranistas, que ali chegavam para descansar e se restabelecer de graves enfermidades, como também a temida tuberculose. A comida farta e substanciosa, o ar puro e as caminhadas pelas exuberantes paisagens, assim como as tradições europeias de zelo extremo nas questões de higiene da casa e asseio pessoal imprimiram a Gramado uma referência de saúde e bem-estar.
Os veranistas subiam a Serra de trem cada vez em maior número e se tornaram uma grande atração. O apito da Maria Fumaça uma festa constante. Meninos fardados e de chapéu com o nome dos hotéis corriam entre tropeços do chão acidentado com carrinhos de mão e carretas para buscar as bagagens dos veranistas na estação. Pessoas diferentes foram se integrando à vida e aos costumes da pequena comunidade de traços tão definidos. Gramado crescia e, em 1937, se tornou uma Vila. Em 1954, se emancipou de Taquara.
Com a ascensão do governo de Juscelino Kubitschek e o forte impulso no setor automobilístico, linhas de trem foram desativadas. O encerramento das atividades da linha de Taquara a Canela iniciou em 1962 por determinação do Ministério da Viação e Obras Públicas. Em março de 1963, o tráfego foi suspenso e, em dezembro, a retirada dos trilhos. Wanderley Cavalcante, historiador e integrante de um projeto para prestigiar os 100 anos desse marco, com reconstituição física e histórica do caminho percorrido pelo trem, diz que “foram tirando tudo, não deixaram nada. Se destrói, se passa uma borracha na história”. O modelo de hotéis com pensão completa sucumbiriam com o término da linha férrea, assim como os “veraneios de saúde”.
Uma nova ferrovia Porto Alegre/Gramado pode inspirar, talvez, novas opções de turismo, mais focadas na natureza, na contemplação e interação com esse lugar que era considerado um oásis pelos tropeiros, no século XIX. Eles singravam uma travessia que cortava a mata desde Porto Alegre e São Leopoldo, rumo a São Paulo, em marcha tortuosamente lenta, no lombo das mulas a tocar o gado. Dias e mais dias intermináveis, cansativos, sob poeira, sol e chuva. Noites frias ao relento. Um único lugar era esperado com ansiedade – ali havia árvores frondosas e relva macia de folhas largas e escuras, crescendo sempre suculenta ao lado de um riacho límpido. Era um gramado convidativo bem no alto da Serra Gaúcha, o repouso dos tropeiros. Quem sabe um novo turismo não resgate o sentido de repouso, de refúgio para nossas mentes e corações cansados de tanta iniquidade e destruição.
¹A Sultrens é formada pela RG2E, especializada na concepção e formatação de projetos de infraestrutura; a STE, maior empresa de consultoria do RS, com 50 anos de atuação como consultora nos segmentos rodoviário, ferroviário, aquaviário e saneamento, e a BF Capital, da área de captação de recursos para empreendimentos de infraestrutura.
*Vera Moreira foi repórter e editora no Diário do Sul e Zero Hora, em Porto Alegre, e Estadão, Jornal da Tarde e Dinheiro Vivo (Jornal GGN hoje), em São Paulo. Foi agente literária de Sergio Faraco, com quem organizou o livro Decálogo do perfeito contista. Autora de Mulheres, Cérebro, Coração.
Foto da Capa: trilhos de trem – Freepik
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