Desde a Pandemia, tive muita dificuldade de retornar ao cinema. Eu, criatura que amo um escurinho do cinema e que sempre tinha sido uma defensora dele, me vi distante por muito tempo, com medo. Finalmente saí da casca e nestas últimas semanas encarreirei três filmes: A Substância, com Demi Moore (foto da capa), O Quarto ao Lado, com Tilda Swinton, e Ainda Estou Aqui, com a Fernanda Torres. Todos têm feito burburinho por diferentes razões, pois são muito diversos com relação ao modo de filmar, à forma de contar a história, ao tema que trazem à baila. No entanto, apesar das muitas diferenças, percebi que os três apresentam uma mulher como personagem principal enfrentando um desafio crucial em suas vidas, necessitando achar forças e respostas para ele. E nenhuma delas é jovem, são mulheres já na sua fase adulta, madura.
Aviso 1
Bueno, desculpaí, mas vai ter spoiler! Então, se você não assistiu ou não gosta de recebê-los, não siga adiante.
Aviso 2
Esse texto não é uma crítica cinematográfica. Cinema é um dos muitos assuntos que adoro e nos quais sou enxerida e aprendiz.
Aviso 3
Se você já assistiu a esses filmes, adoraria receber sua opinião sobre se percebeu outros pontos de contato entre eles.
A Substância
Neste filme, a personagem principal, Elizabeth Sparkle, vivida pela Demi Moore, é demitida do programa de TV que comanda por ser considerada velha aos 50 anos, e entra em parafuso quando se depara com essa decisão misógina e machista. Revolta, tristeza, confusão que ocorre em especial quando nos deparamos com a passagem do tempo e percebemos que passamos a ser invisíveis, menos desejáveis. Para aquela personagem, que até ali viveu baseada nos valores da beleza que a mantinha, esse momento pesa de uma forma cruel, sofrida e solitária. Ao longo de todo o filme, ela está só. Seus diálogos são internos. Ouve-se sua voz interior, seu olhar avaliador, julgador e condenador sobre si mesma. Afinal, por conta da maneira como somos educadas para o mundo, a gente aprende que quando envelhece “perde valor”. Mesmo mantendo a magreza, os cabelos sedosos, a pele bem cuidada, sempre haverá aquela ruguinha nas costas, como aparece na cena em que Elizabeth está no bar com aquele vestido lindo de costas nuas. Então, com as vozes internas e a pressão ao redor, a gente vai criando mecanismos para se assegurar jovem e desejável. No filme, surge a Sue, personagem da Margaret Qualley, o “eu jovem” da Elizabeth por causa da tal “substância”. E Sue mantém a sua conversa solitária, com as vozes persecutórias sem cessar sobre ela.
Quantas vezes, como a Elizabeth e a Sue, a gente fica apenas se consumindo internamente, ouvindo e obedecendo ao que esse diálogo interno nos dita? E muitas vezes tomando decisões baseadas não naquilo que é melhor para nós, mas no que os outros esperam da gente, no nosso desejo de agradar a quem gostamos? Ou que nem gosta tanto assim, como a gente pode descobrir ali adiante.
Fico imaginando como seria curativo para a Elizabeth se ela pudesse contar com uma/s amiga/s para chorar, falar das suas dores, contar os medos que estava passando, xingar aquele chefe escroto e machista. Imaginar alternativas para ela fora da TV, quem sabe escrever um livro, fazer um videocast ou podcast? Ao final, depois de umas taças, rir, mesmo ainda chateada, mas aliviada e esperançada. Claro que o filme não seria mais A Substância, mas quem tem uma/s amiga/s do peito sabe do que estou falando, né?
O Quarto ao Lado
N’O Quanto ao Lado, a gente se depara com Martha, Tilda Swinton, sabendo que não tem mais saída para sua doença. Tudo o que poderia ser feito já foi. Ela sofre com as dores da doença e com os efeitos das medicações. O médico já lhe disse que resta pouco tempo. Ela decide terminar com sua vida nos seus próprios termos, praticando a Morte Assistida (para saber mais a respeito, leia aqui a coluna que escrevi a respeito). No filme, a gente se questiona sobre a morte, a finitude e o quanto isso está sob o nosso controle ou do Estado. Os mecanismos morais, legais e religiosos que impedem que sejamos livres para decidir a respeito. No filme, Martha reencontra sua amiga de juventude, Ingrid, interpretada pela Julianne Moore, amizade antiga que logo se reaquece e aprofunda, mesmo ambas sendo pessoas absolutamente distintas. Uma amizade que se torna ninho para ambas através das recordações, dos embates, dos segredos que vão partilhar. E é nessa amizade que Martha irá se apoiar para seguir seu plano e será nela que Ingrid irá se consolar quando a amiga se for e transformar em livro o legado deixado por ela em forma de diários. Nessa amizade respeitosa, pois ambas têm valores e formas diferentes de viver e enxergar o mundo, complementam-se, apoiam-se, escutam-se e aprendem mutuamente. E essa amizade, tanto quanto o tema da finitude e morte, é central no filme, para mim.
Esse filme me lembrou daquela imagem em que estamos cercados de pessoas, porém na absoluta solidão. No entanto, se tivermos ao menos uma amizade, como Martha teve com Ingrid, quanta diferença ela pode fazer na vida! Quem é a “sua Ingrid”?
Ainda Estou Aqui
Eunice Paiva, vivida pela Fernanda Torres, é mãe dedicada, esposa apaixonada, amiga leal, patroa justa… seguia todo o script que se esperava das mulheres da sua época até que seu marido, Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello, é sequestrado e morto pela ditadura militar brasileira, e ela própria chega a ser aprisionada por agentes da repressão… Ela então se metamorfoseia. Transforma-se. Reinventa-se. Se é imperioso vender os bens da família para sustentá-la, vende. Se é fundamental mentir e implorar por provas para a investigação de seu marido assassinado, mente e implora. Se precisa largar os confortos de que gozava, larga. Se for necessário ir para outra cidade para estar mais próxima da sua rede de apoio familiar com seus cinco filhos, vai. Se é básico trabalhar para sustentar a família, faz uma faculdade e se torna advogada. Mas todo esse processo, sofrido, a gente acompanha Eunice decidindo sozinha, mas com apoio, de maneira colaborativa, com o advogado, com sua rede de amigos e de contatos, com o suporte da família, com a contribuição de parceiros e parceiras que vai granjeando para suas causas ao longo da vida. Mesmo fazendo só, ela nunca está sozinha. Chamou a atenção uma das cenas finais, quando está entrando no prédio onde irá receber a certidão de óbito do marido, vários funcionários do Tribunal estão sorrindo para ela, felizes por ela. Naquele momento, auge da sua luta, ao passar pelo Porteiro, ela pergunta como está a saúde da sua filha e manda abraço para a família. Uma mulher que soube construir relações, cultivadas pelo respeito e pela gentileza. Uma mulher que conseguiu manter uma família unida em torno dela até o final. Sorrindo.
E esses três filmes sobre essas três mulheres, mesmo não sendo sobre amizade e relacionamentos, também me trouxeram essa reflexão: como estamos construindo nossas conexões sociais?
Vivendo feito Elizabeth e Sue, atormentadas por suas vozes internas e solitárias, devoradas por elas, é o que não queremos ser, né?
Nosso kit diário para o bem-estar e para viver mais e melhor, tanto quanto água, sono em dia, sol, comida de boa qualidade, deveria conter uma dose generosa, se não a maior dose, de relacionamentos de qualidade. Aqueles que nos energizam, aquecem, dão significado para estarmos vivos. Confirmando isso, temos estudos, pesquisas, teorias, livros, documentários, especialistas mundo afora confirmando que os vínculos afetivos, de amizade, de vizinhança, comunitários de boa qualidade nos fazem sentir pertencentes e importantes para algo e alguém e, por consequência, cuidar mais e melhor de nós mesmos (leia aqui coluna sobre os resultados do Estudo da Universidade de Harvard a esse respeito). Um efeito que leva nossa saúde a se beneficiar tanto quanto se tomássemos vitaminas e praticássemos atividades físicas. Com a vantagem de que, para isso acontecer, podemos começar com um sorriso e perguntando sobre “como vai você?”.
Todos os textos de Karen Farias estão AQUI.
Foto da Capa: Demi Moore, em A Substância / Reprodução do Youtube