Em um dos feriados em meio à pandemia viajei com uma amiga e nossas duas filhas, de carro, para uma casa de campo um pouco afastada de Porto Alegre. Passado algum tempo de estrada, as crianças, com sua típica impaciência e talvez hoje com uma dificuldade ainda maior do que no meu tempo de infância em lidar com o tédio e com a paisagem de uma viagem, começaram a ficar inquietas no banco de trás, e minha amiga propôs que ela e sua filha ensinassem a mim e à minha um jogo chamado “três pontinhos”.
O jogo nada mais é do que uma pessoa iniciar inventando uma estória qualquer e, ao chegar em algum momento, interrompe o relato e diz: “três pontinhos…” e então a próxima pessoa deve continuar a estória do ponto onde ela parou até onde queira e também dizer os tais três pontinhos. E assim a roda da estória segue, numa costura bonita, criativa e às vezes sem sentido algum. Quase como a vida.
Estava lendo hoje pela manhã um ótimo texto sobre a questão das metas e resoluções de ano novo, onde o autor dizia que não fazia as tais resoluções, mas que para esse ano especificamente havia decidido abrir mais espaço em sua vida e sua rotina. Espaço de tempo, mental e emocional também. Quando li o texto, pensei que sou muito parecida – listas, metas e resoluções me angustiam bastante e, no meu caso especifico, limitam bastante também – e achei engraçado ler isso dias depois de eu ter tomado uma decisão banal sobre meu próximo final de semana, mas que entra um pouco nesse assunto.
Do alto dos meus 45 anos, pela primeira vez decidi ir a um bloco de carnaval de rua. Sim, leitores, eu nunca fui a um bloco de carnaval. Minha carne não é de carnaval, como cantam os Novos Baianos. Minha carne é de milongas, de baladas, de inverno, poesia, lareira e até uma certa melancolia.
Entendo o carnaval como uma festa popular fundamental pelo que representa de resistência, liberdade de corpos e fantasias. Uma brecha no tempo onde o próprio tempo não existe, o superego fica um pouco (às vezes muito) distante e corpos são livres para serem mostrados, vividos e experimentados como cada qual entende. Mas eu pessoalmente nunca gostei. Minha família pequena, descendente direta de refugiados de guerra, nunca ouviu samba, nunca trouxe o carnaval para perto de mim. Mas por alguma razão, quando soube desse próximo evento carnavalesco que vejo tantos amigos e amigas exaltarem e participarem, decidi ir.
E quero ir com o pacote completo da experiência: glitter no rosto, roupas (in)adequadas para a situação, usar as cores do bloco, enfim, experiência completa. Posso durar uns 30 minutos no evento e pensar que de fato eu não pertenço mesmo a esse universo ou então ter uma grata surpresa e me ver envolvida naquela festa, no calor, na alegria e na liberdade e só sair quando a festa acabar. Ok, me conheço, não tão longe assim, mas vocês entenderam a ideia.
Porém, o que minha decisão de viver essa experiência nova interessa aqui e o que ela tem a ver com o jogo dos três pontinhos?
Não foi uma resolução consciente minha começar 2024 fazendo algo que nunca havia feito, me desafiar a sair da zona de conforto para visitar um pouco minha zona de confronto quando o assunto é diversão. Mas depois de ter a ideia, sinceramente, gostei da proposta e vou realmente dar essa chance ao carnaval em mim. Isso significa ser atravessada por algo que não fez parte da minha narrativa de vida.
O jogo dos três pontinhos é isso, é correr o risco de o outro colocar na minha estória um elemento totalmente imprevisto que vai me obrigar a redesenhar a estória inicial que eu tinha na cabeça. Ou mais ainda: o jogo em si já me obriga (se eu quiser jogar bem) a não ter nada previamente muito desenhado ou traçado como rumo da estória porque até a palavra voltar a mim, os outros podem inserir tantos outros desvios no fio condutor, que tudo o que eu poderia ter pensado simplesmente não serve mais.
Viver talvez seja um pouco assim. O ideal é que seja pouco mesmo, porque demais nos desnorteia e angustia. Um pouco de previsibilidade, de roteiro, embora saibamos que a vida mesmo é imprevisível, nos protege e alivia. Mas pensar que o carnaval é um imenso desvio da minha narrativa e tudo que pode vir a partir dessa vivência quando os três pontinhos voltarem para mim, pode ser uma forma bem emocionante de pensar a vida. É só um domingo, eu sei. Pode ser que nada mude, pode ser que tudo mude, pode ser que eu volte correndo minha estória para meus dias de chuva, minha estética do frio ramilongueana e esse episódio vire só uma história engraçada para contar.
E então tudo que poderei fazer será: três pontinhos…