Os recentes atos do protagonista do “Liberation Day” me fazem recordar os meus dias de professor na 5ª série.
Nos anos 1990, a prefeitura de Recife colocou os conteúdos de História Geral para os primeiros anos do ginasial. Daí, a pré-história e a antiguidade ficaram no currículo da meninada que estreava um novo momento de vida.
O primeiro dia de aula era sempre um evento: aquele público que na anterior Copa Mundial de Futebol era criança de colo, agora, ia se deparar com os intrincados movimentos das Eras Históricas, e, aquele professor, cheio da intelectual empolgação com as grandes correntes historiográficas, teria que traduzir as ambíguas dinâmicas das forças que movem as sociedades para ouvintes afeitos aos maniqueísmos de Tom e Jerry.
Assim, por mais que tentasse elucubrar sobre as tensões inerentes às disputas pela produção e circulação dos bens que estruturavam as sociedades, a feição de incompreensão e desencanto daqueles olhares me fazia mudar de estratégia discursiva e ir – logo – para o que mais lhes interessava: os acontecimentos notáveis. A narrativa épica se iniciava no instante em que, a arrepio da Escola dos Annales, nos referíamos àqueles povos com o quase adjetivo “Civilizações”.
Ministrar aulas de história como quem contava estórias, reconheço, era pouco historiográfico, mas era um barato!
A explanação epopeica se impunha por ela mesma: quando eu me dava conta, já não tinha nenhum método analítico sendo apresentado, nenhuma reflexão sobre a materialidade dialética da história. O que envolvia tanto o jovem docente quanto a criançada era o movimento quase que trágico da história dos marcantes corpos sociais, cujo ápice era o suposto fim de seus poderios: babilônios suplantando sumérios, assírios subjugando a Babilônia; gregos contra gregos no Peloponeso, Roma se impondo sobre Cartago, bárbaros rendendo Roma. Em cada conflito, em cada tragédia, seus heróis e vilões: Aquenatón e o Egito forçado ao monoteísmo, Nabucodonosor e a captura de Jerusalém (levando preso o bíblico Daniel), a frustração paquidérmica de Aníbal. E, principalmente, a queda de Roma!
Rômulo se chama o fundador da milenar Civilização, Rômulo é nome do terminal de seus césares: isso não era coincidência… Era o destino trágico manifesto!
Nesses dias de lambanças tarifárias, o que me incomoda é pensar que, se o tempo desse um tru(m)picão e eu tivesse que falar para o alunado de trinta anos atrás sobre os dias de hoje, como se fossem um passado remoto, não poderia contar esses eventos sem apelar para as marcações de uma tragédia épica.
Lembro que, ao falar de Roma, um dos momentos impactantes se dava ao apresentar os mapas do seu máximo domínio: era um quadro que cobria toda a Europa, Norte da África e parte do Oriente Médio. A imprecisão acadêmica dessas cartas é inversamente proporcional ao efeito memorável que elas causam.
No caso do Império Americano, o mapa de seu pleno domínio se estenderia pelas Américas do Norte, Central e Sul; cobriria os países nórdicos e a Europa; do Oriente Médio, conteria Israel, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Kuwait e Jordânia; da África, incluiria além do Egito, parte das regiões meridional e ocidental; do Oriente, além de algumas ilhas, teria Japão e Coréia do Sul.
Porém, conforme rezam os vaticínios dos livros de história da 5ª série, toda grande civilização tem seu ocaso. Assim, o momento inicial do fado de sua decadência teria se dado quando um grupo de fanáticos, por ela antes apoiado, destrói o maior símbolo de seu poder: duas torres das mais altas dentre as nações (três vezes maiores que a Pirâmide de Gizé), ocupadas por escritórios de seus negócios no mundo, denominadas, sem modéstia, de Centros do Comércio Mundial. Daí em diante, seus imperadores provocam guerras em diversas partes do planeta e seus legisladores se voltam contra o povo. E, do outro lado do globo, se fortalece uma civilização que vem gradualmente se aproximando das antigas fronteiras do poderoso Estado, chegando a incorporar suas regiões mais ao sul, em particular um reino chamado Brasil.
Tendo sua extensão revogada, um dos últimos soberanos americanos empreende, contra o inimigo oriental, o que seria sua derradeira peleja. O rival inicialmente reage resistindo às suas investidas, até que essas perdem força e ele começa o contra-ataque: secretamente suprime as bases mais profundas do poder e riqueza do Estado do Norte, uma coisa chamada Títulos do Tesouro, de que o oriental havia tomado posse de boa parte, tempos antes, sem levantar suspeitas. O decadente rei do descendente reino ainda tentaria arrumar pequenas batalhas para adquirir algum prestígio, todavia, o destino trágico de seu império já havia se consumado.
O termo da nefasta sina ocorreu quando, não se dando conta de que já não eram quem foram, o referido monarca, em nababesco banquete, perante sua corte, diz, sobre os interesses de seus inimigos e até sobre os daqueles que ele mantinha em pacífico domínio, que “these countries are calling us up, kissing my ass!”[1], cuja versão em português pode ser “esses países estão nos procurando e puxando meu saco”, que ficaria pior na transposição direta dos termos: “Esses países estão nos chamando e beijando minha bunda”…
Talvez, eu não dissesse à garotada essa parte final, pois, às vezes, a verdade de certos fatos na histórica é tão grotesca que seria esquisito se contar como estórias para a 5ª série…
[1] Ver o vídeo do fato aqui.
Todos os textos de André Fersil estão AQUI.
Foto da Capa: White House