“Thy graces and good words my creatures be”.
Elegy VII – John Donne (1573-1631).
“Julho é um mês cinza cinzento violeta. Da cor de um tempo que aniquila a vegetação e as pessoas. Dura anos julho. E dói. O frio espalha-se feito umidade pelas paredes das casas e penetra nas frestas das portas. O vento arrasta folhas e resseca a pele das faces. Até o soalho das salas se aquieta com a ausência de visitas. Nos telhados julho toma forma de chuva. E é vão o apelo para que o inverno acabe. Não há trégua. As noites parecem longas como as que duram meio ano num outro planeta. E as manhãs nevoentas trazem navios fantasmas pelas águas do Guaíba”.
O texto acima é parte de um poema da Celia Maria Maciel. Julho a levou, às 17 horas e 50 minutos da tarde do sábado dia 13, desse ano de 2024, aos 78 anos de idade. Em Cachoeira do Sul, cidade onde nasceu em 23 de junho de 1946.
Formada em Jornalismo, Letras, Ciências Sociais e especialista em Literatura Brasileira e Escrita Criativa. Várias vezes premiada, escrevia crônicas, poemas; prosa poética de rara sensibilidade e que ainda merecerá a devida valoração e natural transcendência. Autora de “Mariana quatro olhos”; “Passo pássaro passado”; “Campos de arroz maduro”; “Criaturas minhas’; “O país do nariz, dos olhos, da boca e de outras partes interessantes…”; “Perfume para Madame Rosa” e “Ao menor sopro”.
De recortes do cotidiano a uma potente voz de resgate intimista, uma doçura melancólica catártica, com força e lirismo.
Filha de Dona Alba, célebre artesã-doceira da cidade do Château d’Eau, Celia tinha alma de açúcar. Vê-la conversar com crianças era coisa de gente grande. Um dia, referindo-me a ela, rabisquei: “Celia Maria, fada-madrinha, maga, magrinha, varinha de condão”.
Transfigurava-se em texto a aparência frágil e discreta.
“Faço versos num jeito meu que é o das minhas orelhas meio abertas dos dois vincos na testa e do coração trêmulo de susto. Faço versos com vergonha e medo e sei que não é cedo ah não é cedo. Os engenhos cessaram o delírio entre e a casca e o grão de arroz e a minha nudez é magra e branca mudez.”
“Acho que sou um pouco parecida com um peixe meio quieta e solitária. Acho que sou um pouco esse bicho. Esse silêncio sagrado dentro d’água. E a mansidão um nicho sem fronteira limite ou perversão. Só que dentro de mim há um temporal tremores pânico medos abissais. E dentro do peixe o intemporal”.
Na apresentação de “Criaturas minhas”, que tive a honra de prefaciar, citei um trecho do III ato da peça “Nossa cidade”, do dramaturgo americano Thornton Wilder (1897-1975): “Pois há certas coisas que todos conhecemos, mas não costumamos procurar e olhar com muita frequência. Todos sabemos que alguma coisa é eterna. Não são as casas, nem os nomes, sequer as estrelas… Todo mundo sabe, em seu íntimo, que algo é eterno, e que esse algo nos diz respeito”.
Lá, fazia referência ao que sentia, e ainda sinto, à leitura da poesia de Celia Maria Maciel, algo que se aproxima a um assombro. Hoje a eternidade assoma e me enternece.
Num outro de seus poemas, Celia nos conta: “Quando cheguei do porto, minha mãe já não tinha mais lembrança alguma. Deitei bem junto ao corpo dela como se fosse filha minha. Os dias andavam ensombreados mas a terra estava pronta (ela sabia). Era outubro e faltava uma semana para a sua semeadura no lilás como chuva pólen vento e pó”.
Em outro, ela ensina: “Todos os ventos espantam os horizontes onde morrem os campos amarelecidos e empurram para longe as tardes de lentos verões. Todos os ventos retalham os sorrisos a noite os avisos. Retalham a indiferença das rainhas estampadas nos baralhos e vão deixando restos rastros e rezas. Só a dor os ventos não vencem”.
A última vez que estivemos com ela, também havíamos chegado do porto e ela tinha poucas e vagas lembranças. Choramos um afeto que, assim como a dor, nem os ventos podem vencer. A dor, julho levou, o afeto permanece. Semeado no lilás como chuva pólen vento e pó. Grão semente saudade.
Na foto, que tiramos no pátio de casa, no porto, vejo-a agora ao lado de Mariana Quatro Olhos. Elas se reencontram e sorriem, faceiras. Doces criaturas.
Foto da Capa: Acervo do Autor
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