Em 2009, publiquei minha primeira narrativa longa, Tudo o que fizemos, uma novela de formação sobre quatro rapazes em idade escolar que tentam praticar um gesto meio impensado de protesto político e, quando este falha e um deles se vê na situação de ser responsabilizado sozinho, os demais precisam vasculhar sua consciência e seu remorso para descobrir que tipo de pessoas são, apesar de seus discursos e boas intenções: se tomam à frente de modo voluntário como os cúmplices do colega ou se ficam quietos esperando que ele assuma tudo sozinho. De contrabando, eu tratava no livro de algumas questões que a forma da novela de formação me permitia abordar: o medo da inadequação na adolescência, o caráter ao mesmo tempo sólido e agressivo das relações de coleguismo entre homens jovens, a descoberta da sexualidade, os efeitos dispersos nesse tipo de mente em formação daquilo que, na época da escrita, eu chamava só de machismo mesmo, mas que hoje parece que chamam de “masculinidade tóxica”.
E, por último, mas não menos importante, era central no livro a relação não de todo fácil entre a juventude do período em que a história se passa (fim dos anos 1980, começo dos anos 1990), e o legado político da geração de seus pais, seja aqueles que de algum modo se opuseram à ditadura, seja aqueles que a apoiaram e ainda colhiam, de algum modo, as vantagens advindas desse apoio. Se você se interessou, procure a Editora Leitura XXI e peça um exemplar. Vendeu tão pouco que eu tenho certeza de que ele ainda tem alguns por lá (rere)
Na origem, o livro tinha outro título que eu ainda vou usar em outra coisa, se tudo der certo, mas ao discutir a questão com meus dois editores, Sergius Gonzaga e o hoje colega colunista aqui da Sler Pedro Gonzaga, na época em que a novela passava por preparação, surgiu esse novo título (não foi ideia minha, mas não me lembro de qual dos dois partiu a sugestão) que para mim encaixava perfeitamente e ainda produzia uma camada a mais de sentido na organização estrutural do livro como um todo. A narrativa era dividida em três partes, cada uma delas nomeada com um verso de alguma canção famosa do rock brasileiro que fazia sucesso entre nós, adolescentes na época daquela história. Logo, para mim fazia completo sentido que o título do livro fosse um verso que remetia a Como nossos pais, de Belchior, um hino sentimental e filosófico da geração anterior.
Gerações
Funcionava melhor ainda, para mim, pelo fato de que Como nossos pais era uma música que, na voz de Elis Regina, eu achava chata para um cacete. Talvez pela recorrência com que meus tios politizados a ouviam na infância, talvez porque todas as características técnicas pelas quais todos louvam Elis, e que hoje eu até compreendo intelectualmente, não conectavam comigo de modo algum, eu não entendia ou não sentia nada com sua interpretação, melodramática a meu ver, e só fui gostar de verdade dessa canção anos depois, quando conheci a versão mais sóbria do próprio Belchior.
Mas esse era exatamente um dos pontos que eu estava abordando no meu livro: o quanto a minha geração chegada à adolescência nos anos 1990 em que parecia não haver mais inimigos contra quem lutar e mesmo utopias às quais se filiar parecia perdida de um modo que não se comunicava com as aspirações e os modelos da geração anterior. Isso se refletia também no divórcio musical entre nossos pais que ouviam música brasileira e nós, os adolescentes rebeldes que estavam descobrindo o rock como veículo de nossa raiva um tanto niilista.
Porque, e esse era um entendimento compartilhado por qualquer um com ouvidos e dois neurônios até há pouco tempo, Como nossos pais é uma canção sobre o conflito de gerações não no seu ápice, mas numa etapa posterior em que a voz da canção (poderíamos chamar de “sujeito-lírico”, mas as pessoas costumam ficar um pouco agitadas perto de mim quando uso termos de teoria literária, sei lá por quê ) lamenta profundamente que as ilusões de juventude acabariam se diluindo no conformismo e que o grande mundo contra o qual se lutou tanto e se tentou tanta coisa no fim acaba vencendo e impondo aos jovens a mesma vida que seus pais tiveram. Na época em que Belchior escreveu a canção, havia uma conexão direta com a ditadura militar a pleno vapor (“Eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens”), mas Belchior era um poeta mais completo e mais sutil do que isso, então ficava claro nas entrelinhas de sua composição que não era apenas o governo ditatorial de ocasião o responsável por essa derrota coletiva. Em última análise, era o próprio capitalismo assentado num conservadorismo burguês ancorado numa visão de mundo carola o vilão último da canção (“Hoje eu sei que quem me deu a ideia / de uma nova consciência e juventude / Está em casa, guardado por Deus / contando vil metal).
Exumação digital
Sim, a essa altura vocês todos, meus sete ou oito leitores, pessoas mais inteligentes do que eu e conectadas com o mundo, já concluíram que o pretexto deste meu texto foi o comercial recente no qual a Volkswagen transformou Elis num zumbi digital numa propaganda de Kombi elétrica, com sua filha que faz 20 anos dá entrevistas dizendo que está de saco cheio de ser associada com sua mãe provavelmente embolsando uma grana bacana para ser… olha só, associada com a mãe.
Minha questão nem é com o zumbi digital propriamente dito. Se você quer minha opinião, e acho que não quer, achei a coisa toda atroz, mas, parando para pensar, vejo que nós aqui no Brasil é que estamos já um pouco atrasados nessa discussão sobre a necrofilia digital em nome do marketing. Não apenas hoje é um elemento pacífico no cinema blockbuster americano ter performances de gente morta passeando pelo Vale da Estranheza (Rogue One, que “ressuscitou” digitalmente o grande Peter Cushing, é de 2016) como no próprio domínio colorido da propaganda sem noção tivemos um número considerável de outras exumações tecnológicas, de Audrey Hepburn vendendo um chocolate com nome de sabonete até Bruce Lee fazendo propaganda de uísque (ambos são de 2013).
A própria Volkswagen autora da atrocidade com Elis é uma reincidente contumaz na mercantilização de gente morta. Ela já havia torturado digitalmente o corpo de Gene Kelly em seu número mais famoso de Cantando na Chuva fazendo o ator dançar um remix eletrônico da canção original para marquetear o Golf. E já tem ficha corrida até mesmo no Brasil, dado que uma propaganda de 2013 trazia uma versão digital de Muçum se admirando com uma versão modernosa (e bastante cara, o que o comercial convenientemente não dizia) de Fusca.
O que mudou da época desses exemplos para agora foi a tecnologia à disposição. Se antes a reconstrução exigia um trabalho meticuloso de computação gráfica, hoje a evolução da tecnologia dos “deep fakes” representou um bom número de atalhos de tempo e de produção, uma vez que agora você programa o computador com o máximo de imagens disponíveis do artista que você pretende “reviver” para treinar a ferramenta de inteligência artificial. Ainda é necessário o trabalho de bons técnicos de efeitos para aparar muitas arestas, mas provavelmente isso será ainda mais comum doravante, e eu nem finjo entender os grandes debates jurídicos que isso vai provocar – a imagem “pessoal” de um artista deveria ser de algum modo correlata à sua obra, cujos direitos são transmissíveis a herdeiros? A imagem pública de um artista de algum modo é diferente do próprio artista nesse sentido? Em artigo recente a advogada Flávia Penido dava o exemplo de Pelé, que sempre separou ele próprio a figura icônica do Pelé jogador da do cidadão particular Edson Arantes do Nascimento. São questões que devem se tornar cada vez mais frequentes dado que a publicidade vai continuar fazendo esse tipo de coisa e é muito improvável que algum mecanismo legal seja acionado para conter de algum modo essa que é mais uma manobra do Grande Capital no processo inexorável de tornar qualquer coisa mercadoria.
A isca da emoção
Logo, a esta altura, passada uma semana da confusão e contemplando um futuro em que teremos celebridades mortas vendendo qualquer coisa, nem me estendo sobre esse ponto, e sim sobre a obrigação que temos nós, já que a propaganda vai continuar fazendo, de não ser um idiota manipulado pela emoção achando essa necrofilia pop muito bacana. É esse o meu ponto aqui.
A música de Belchior dizia uma coisa, claramente. Embora muitas interpretações possam ser livres e até mesmo piradas, há interpretações que ampliam o sentido de uma obra e outras que claramente o confrontam, tentando quebrar seus ossos para que caiba no porta-malas pouco espaçoso de uma visão de mundo unilateral e algo míope. Não tem como ouvir essa canção que fala textualmente da dor em perceber essa repetição constante da miséria intergeracional e pensar: “nossa, essa é a música perfeita para celebrar os valores positivos que ficam de uma geração para outra”, tese central do comercial. Mas se estiver todo mundo pensando, o embuste fica claro, então você precisa da pirotecnia. A canção de Belchior, ela sim emocionante, e o fake da Elis, mais jovem do que a própria filha. É essa emoção artificial a responsável pelo arrebatamento de muitos que passam então a comprar essa interpretação empurrada pelo comercial.
Interpretações como essa claramente preferem ignorar o texto e o contexto em nome de uma leitura paralela muitas vezes interessada. Assim, os publicitários que criaram aquela atrocidade talvez claramente saibam que estão jogando contra o legado da própria obra (para não falar do legado biográfico de seus dois maiores intérpretes: a Elis que apoiou corajosamente greves de operários na indústria automobilísticas numa época em que greve dava cadeia; o Belchior tão radical em sua renúncia de uma vida “como nossos pais” que passou anos desaparecido do olhar público). Mas há um interesse aqui: esses publicitários estão ganhando grana para vender a marca (uma marca que, é bom lembrar, na mesma época em que Elis fazia shows em apoio à peonada, emprestava suas instalações para a tortura de perseguidos pelo regime). Faz parte do kit de ferramentas da profissão a distorção de conceitos em nome do produto, já que a propaganda apela para emoção para despertar instintos de consumo por impulso – logo, por mais que esse campo profissional tenha hoje sequestrado para seu uso particular a palavra “criativo”, o que se “cria” com a publicidade não é reflexão, é impulso, e muita propaganda já descobriu que um dos melhores caminhos aos impulsos é a emoção, principalmente a barata.
Os fãs de comercial
O que me intriga, deixa perplexo e até um pouco enojado é o tanto de idiota que decidiu que deveria defender a ideia espúria do comercial como uma forma de defender sua própria reação emocionada. Ao longo do dia em que aquela autópsia digital foi divulgada nas redes, um bom número de pessoas especialistas na vida e na obra de Elis reagiram com compreensível horror ao que viram, apenas para ser interpeladas por seus contatos chamando-os de “chatos” por estarem “problematizando” o que era apenas uma linda peça publicitária que os havia feito lavar o rosto em lágrimas. Tenho a impressão desde sempre de que quem tem esse tipo de reação indignada à crítica a algo que gosta provavelmente é porque sabe que a crítica tocou em algum problema real e desorganizou seu o sistema pessoal de afetos fazendo-o justificar-se inconscientemente. Daí esses ataques um pouco agressivos. O fã de publicidade sabe que, ao se emocionar diante de um comercial, caiu no mais baixo truque sensacionalista de uma profissão cujo trabalho de base é justamente criar esse tipo de truque a serviço do mercado. Ninguém está livre disso, mas perceber com reflexão que pode ter sido capturado nesse processo é bem diferente do que apedrejar o mensageiro e insistir que a “emoção provocada” legitima tudo.
Quem se emocionou com aquela Elis digital que parecia um NPC de Playstation 3 está em seu direito, mas achar que essa emoção interdita a crítica à desfaçatez de mais essa patacoada do Grande Capital é ser idiota. Muita atrocidade é também cometida sob impacto de emoção, e isso não a torna menos atroz.