Não convém destruir uma estátua. Nem mesmo desdenhá-la. Seria cuspir no prato que, um dia, alimentou-nos de forma frugal. Seria desfazer uma homenagem literalmente sólida só porque a figura do alvo se liquefez, feito tudo o que, desde o começo, não foi duro bronze. Nada é duro bronze, a não ser o próprio.
São tristes os exemplos históricos desses atos, quando uma ideologia amealha poder e derruba os símbolos sagrados da que a precedeu. Não está destruindo um símbolo. Salvo exceções de contragolpes indiretos em sanguinários ditadores, destrói a própria história. Por isso, o nosso texto nasce torto, quando chega cogitando a destruição de uma estátua. Que o faça, portanto, de forma simbólica, com um pano que a cubra delicadamente (no sentido figurado), com olhos que não mais a fitem (paralisada) e, sobretudo, com dessemelhantes (humanos) que não a adorem acima das coisas da vida. Adorar é para os Deuses, e as histórias da história já mostraram o que esses podem fazer com as pessoas, especialmente se o atributo da divindade lhes permite alguma irresponsabilidade. Sim, Deuses chegam a ser cruéis, justamente por terem perdido a humanidade ou por se sentirem acima dela. E isso é injusto para um ser humano.
Destruir a estátua de Renato Portaluppi traria a versão sonoramente grotesca de uma profanação. Arranharia, sim, a história verdadeira, cuspindo no prato que se comeu fartamente, negando o que foi sólido só porque, feito tudo o que respira (é gás), liquefez-se. Mas, no caso, esvaiu-se paradoxalmente ao ser idealizado pétreo e demasiado além do que – humano – não era pétreo. Diante do tempo, nada é maciço. Destruir a estátua de Renato traria, inevitavelmente, essa versão hedionda.
Por outro lado, abriria, talvez, uma nova e melhor, essa em que um humano tornado Deus onipotente cederia, outra vez, lugar a um homem. Um homem e seu transitório. Um homem e seu desamparo. Que do bronze ao sangue retornasse de um renascimento, sob as dores incoercíveis do novo parto, e pronto para ser reconhecido em todos os seus méritos (não pequenos). Um homem que pudesse reconhecer o quanto negar a sua humanidade comprometeu o tamanho da própria obra, rebaixando a grandeza de um todo de que foi (e será sempre) apenas uma parte, por maior que tenha sido, e seja lembrada. Para sempre. Uma parte que, protegida da aparência falsa de toda solidez, precisaria aceitar o que lhe falta para, então, sim, retomar a beleza do instante que coube a ele, e a todos nós.
Foto da Capa: Gremio.net
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