Não virei pedagoga nem dona de creche. Não virei datilógrafa, meu sonho mais duradouro das infinitas possibilidades que a infância promete para quando crescermos.
Não fui médica, talvez mais por desistência do que falta de desejo. Não tive um Escort XR3 cinza conversível, não tive um fusca (e como meus pais me acolheram quando ele deixou de ser fabricado e eu inconsolável por nem mesmo ter a chance de chegar aos 18 antes para dirigi-lo ao menos uma vez). Depois, minha ingenuidade contente quando Itamar Franco decretou seu retorno que, claro, não deu em nada.
Não casei na beira da praia, com um vestido de seda branco longo e coroa de flores na cabeça, sonho que existia muito antes de eu estar pensando em quem poderia ser o noivo. Não namorei o Ethan Hawke, o River Phoenix, não fui a mulher nota 1000, nem a namorada de aluguel. Não vi o Grêmio ser campeão do mundo em 95 com meus colegas de escola em Porto Seguro. Não tive um casal de filhos antes dos 35, não virei patinadora, nem cantora, muito menos Paquita.
Em compensação, consegui virar escritora, consegui ser psicóloga e trabalhar por 10 anos da minha vida em um hospital incrível atuando com pacientes oncológicos, sonho que desde o meio da faculdade eu cultivei. Consegui ser mãe de uma menina, amar e ser amada, consegui ser professora, ter amigos e amigas de verdade. Consegui, meu Deus, publicar um livro! Consigo fazer poesia de minhas dores e das belezas que enxergo no mundo. Consegui sofrer quando achei necessário e desnecessário também, aguentar quando fui pega de surpresa pela tristeza. Consegui perder sem me perder, ganhar sem me perder. Consigo cantar alto no carro, fazer careta, perder a linha.
Esse lance de castração é engraçado e difícil. Minha filha, a caminho da escola sentada no banco de trás no carro, larga um seco, direto e aleatório: “Mãe, a vida é difícil, né?” Ela tem sentido uma grande dificuldade de escolher. Qualquer coisa. Se quer a blusa rosa ou lilás, se quer ovo ou torrada no café da manhã, se prefere ouvir música ou desenhar. Ela diz: “Mãe, é difícil demais escolher”. Eu digo que entendo, que é sempre difícil mesmo ter que abrir mão da outra opção que a gente não pode fazer. Quanto à declaração no trajeto da escola, eu só pude concordar. Aos 9 anos, ela já entende que a vida é difícil mesmo, que escolher não é fácil. A gente escolhe o que pode e o que acredita ser o melhor naquele momento. Eu não fiz quase nada do que achei que faria até essa altura da vida, mas também fiz tantas outras coisas e vivi outras experiências que nem sequer imaginaria.
Crescer faz a gente virar outra ou mais de si mesma. Com sorte esse caminho vai sendo cada vez mais genuíno e espontâneo. Com sorte as perdas são toleráveis, progressivamente mais elaboradas. A gente sempre vai querer ser mais quando crescer. E não paramos de crescer até o suspiro final. Numa próxima vida, queria ser um pouco mais organizada e um pouco menos – só um pouco – sonhadora. Sonhar demais pode atrapalhar o pé no chão, ele faz falta.
A vida ainda quer que a gente queira ser mais quando crescer.
Foto da Capa: Colagem
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