O colunista por um quarto de século (1992-2017) lecionou a disciplina “Arquitetura em Porto Alegre”, incentivando os estudantes a conhecer um pouco da arquitetura e urbanismo na cidade. Desta experiência ficou uma convicção, de que menos de uma meia dúzia de prefeitos foram de fato eficientes. Dentre os piores, os últimos.
Ao contrário, Roma, nos seus mais de dois milênios de existência, teve muitos prefeitos – sindaci, plural de sindaco – notáveis. Nos últimos cinquenta anos, vários nomes se destacaram. A começar pelo turinês Giulio Carlo Argan (1909-1992), historiador e teórico de arte reconhecido internacionalmente, cujas obras são basilares para o estudo da arte e da arquitetura. Dentre seus escritos destacam-se os livros Arte Moderna, Clássico e Anticlássico, História da Arte como História da Cidade. Argan ocupou o cargo entre 1976 e 1979. No final do século passado, assumiu o romano Francesco Rutelli (1954), prefeito da cidade de 1993 a 2001, posteriormente ministro dos Bens e das Atividades Culturais da Itália (2006-2008), no mandato do primeiro-ministro Romano Prodi (1939). Atualmente administra a “cidade eterna” o romano Roberto Gualtieri (1966), historiador e acadêmico que ocupa o cargo desde 2021, após ter sido membro do Parlamento Europeu (2009-2019) e ministro da Economia e Finanças da Itália (2019-2021), no governo do primeiro-ministro Giuseppe Conte (1964), que governou o país de 2018 a 2021.
Bastam estes três nomes para se evidenciar as diferenças entre os administradores das duas cidades. Claro que é uma provocação para evidenciar a necessidade de se erguer a régua nas futuras escolhas dos mandatários da capital gaúcha.
Nestes últimos cinquenta anos, um dos prefeitos de Porto Alegre recebeu, em 1988, o “Prêmio Átila” latino-americano pelo conjunto de sua atuação nos quatro anos de mandato, em especial pela ideia de transformar a orla do Guaíba numa Copacabana gaudéria. Na oportunidade, o CEDODAL (Centro de Documentação da Arquitetura Latino-americana), abrigado no Espaço Cultural da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Buenos Aires, entidade respeitável e reconhecida no meio acadêmico, divulgou internacionalmente o indesejável prêmio recebido pelo chefe do executivo municipal.
Novamente motivos não faltam para Porto Alegre se destacar negativamente. Basta ler a mídia alternativa para perceber que algo acontece, ainda que a administração seja diariamente respaldada pelo apoio da chamada grande imprensa. Recomenda-se ao leitor acessar os artigos escritos aqui na Sler, e as matérias veiculadas no Sul 21, para perceber que vozes críticas se levantam para denunciar a atuação da administração municipal no que diz respeito ao planejamento da cidade e tratamento do seu patrimônio cultural e natural. No sul 21, a competente jornalista Lidiane Blanco, em 7 de novembro próximo passado, assina um artigo intitulado “Como um restrito grupo de empresários mudou a lógica do planejamento urbano de Porto Alegre”, de ruborizar qualquer cidadão consciente.
No final da década de 1970, momento no qual era finalizado o 1º P.D.D.U. (Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Porto Alegre), foram criadas as entidades que respaldariam a política de preservação do patrimônio ambiental urbano da cidade. Surgiram o COMPAHC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural) e a EPAHC (Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural). O primeiro, consultivo, para orientar o executivo, composto de representantes da administração municipal e da sociedade civil, e a segunda, como órgão técnico, visando implementar tecnicamente as ações preservacionistas necessárias. Porto Alegre, naquela época, era pioneira na intenção de assumir o compromisso de preservar seus bens culturais imóveis e os bens naturais. Até então, desde 1937, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a preservação do patrimônio cultural estava restrita à esfera federal. No início da década de 1970, com os Compromissos de Brasília (abril de 1970) e de Salvador (outubro de 1971), encontros de governadores de estado, secretários estaduais da área cultural, prefeitos municipais interessados, presidentes e representantes de instituições culturais, teve início uma descentralização que logo envolveu as esferas estaduais e municipais. Na vanguarda, Porto Alegre avançava na ação supletiva dos Estados e dos Municípios à atuação federal no que se refere à proteção dos bens culturais de valor nacional. Do edifício recém inaugurado, situado à Avenida Borges de Medeiros, nº 2244, no Bairro Praia de Belas, sede da Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV), que também sediava a SPM (Secretaria do Planejamento Municipal), emanavam as decisões que definiam o planejamento da cidade. Lamentavelmente, a partir do final da década de 1980, paulatinamente a ideia de planejamento foi sendo alterada e desvirtuada, chegando aos absurdos que atualmente vigoram.
Agora o edifício-sede da SMOV (1966), projetado por Moacyr Moojen Marques (1930-2019), João José Valandro (1928-2000) e Léo Ferreira da Silva (1929-2002), está em perigo. A administração municipal deseja leiloá-lo neste final de novembro de 2023. Não sendo um bem tombado como patrimônio cultural de Porto Alegre, torna-se vulnerável, podendo sofrer danos irreversíveis e até demolição, dependendo dos interesses de quem o adquirir. Uma série de manifestações e ponderações no sentido da sua preservação têm sido feitas, no entanto, o poder público municipal tem se demonstrado insensível e irredutível, a ponto de o próprio Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS) entrar com ação judicial na 9ª Vara Federal de Porto Alegre, para preservar o imóvel.
Em resposta ao pedido de tombamento do prédio, dois técnicos da EPAHC, de maneira superficial e sem apresentar claros argumentos contrários afirmam não ter encontrado argumentos sólidos o suficiente para conformar o tombamento.
Duas importantes obras, de autores consagrados, demonstram a importância da edificação para a cidade. A primeira é o livro “Arquitetura Moderna em Porto Alegre”, coedição entre a Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FA-UFRGS) e Editora Pini, de São Paulo, de 1987. Nas páginas 212 e 213, Alberto Xavier (1936) e Ivan Mizoguchi (1943), inscrevem o edifício-sede da SMOV, dentre as obras mais destacadas da arquitetura moderna da cidade. Lamentavelmente o livro está esgotado e a merecer uma nova edição.
Alberto Xavier, alegretense, foi formado pela FA-UFRGS, em 1961. Atualmente radicado em São Paulo, é autor de diversas obras referenciais sobre a arquitetura moderna brasileira, assunto que lhe deu notoriedade nacional. Exerceu o magistério em instituições do quilate do Instituto de Artes e Arquitetura da Universidade de Brasília, onde foi vice-diretor, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos. Leciona ainda na Universidade São Judas Tadeu e no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Dentre suas atividades profissionais, trabalhou no escritório do arquiteto Rino Levi (1901-1965) e com o arquiteto Ruy Ohtake (1938-2021), dois dos principais nomes da vertente moderna paulistana. O porto-alegrense Ivan Mizoguchi, também é formado em arquitetura pela FA-UFRGS (1966). Lecionou na Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal de Santa Maria (1968-1972), na Faculdade Canoense de Arquitetura (1976-1977), na FA-UFRGS (1969-1997) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – FAU-PUCRS (1996-2006), da qual foi um dos fundadores e primeiro diretor. Na sua respeitável trajetória profissional, venceu, com Rogério Malinsky (1938), o concurso para o Parque Marinha do Brasil (1977), em Porto Alegre.
A outra obra que demonstra a excepcionalidade da edificação é a tese de doutorado defendida em maio de 2004, no Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura – PROPAR, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por Luís Henrique Haas Luccas, intitulada “Arquitetura Moderna Brasileira em Porto Alegre sob o mito do ‘gênio artístico nacional’”, orientada pelo professor Rogério de Castro Oliveira. No capítulo 4º, intitulado “(1958-1968) As alternativas após o concurso da Assembleia Legislativa e os efeitos do Plano Diretor de 1959”, no subitem “sob influências híbridas: vestígios brutalistas na arquitetura local”, páginas 232, 234 e 235, o autor situa claramente o Edifício-sede da SMOV no contexto da arquitetura moderna porto-alegrense. A tese é facilmente encontrada na internet. Atualmente, Luís Henrique Haas Luccas é professor no PROPAR, onde orienta dissertações que envolvem esta temática.
Fica evidente, para início de conversa que o edifício em tela é parte da própria história da cidade e de sua administração municipal. Se não tivesse valor arquitetônico e urbanístico, teria ao menos valor histórico e afetivo.
Sergio Moacir Marques (1962), filho de Moacyr Moojen Marques, também professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escreveu em 2010 sobre o prédio, na página do escritório na internet. Diz ele: “os três arquitetos envolvidos na iniciativa, e designados para a tarefa, escolheram um terreno, próprio municipal, na Av. Borges de Medeiros, próximo a Av. Ipiranga, no tecido urbano mais representativo do ideário associado à tradição moderna do planejamento urbano em Porto Alegre: o aterro da Praia de Belas. Área conquistada ao rio, após sucessivos aterros, expansão natural do centro a partir dos anos 1940, o aterro da Praia de Belas expressava, através dos projetos realizados pelo planejamento urbano, a cartilha do urbanismo moderno, interpretado e praticado, de acordo com as influências locais”.
Desde a segunda metade do século XIX, Porto Alegre passou a aterrar áreas do lago Guaíba para realizar obras públicas relevantes como a Cadeia Pública (1852), o novo Cais da Alfândega (1858), o Mercado Público (1869) e o Gasômetro (1874). Na primeira metade do século XX, a prioridade foi a construção do Cais Mauá (1911-1928), posteriormente ampliado com as extensões dos Cais Marcílio Dias e Navegantes.
Na segunda metade do século XX, foram realizados os aterros para o lado sul do Centro Histórico. Nesta área adjacente ao Centro Histórico, como foi visto, foram implantados o Centro Administrativo do Estado e seus anexos (1972), projetados pelos arquitetos lotados na Secretaria de Obras do Estado Charles René Hugaud (1922-2003), Ivânio Fontoura (1929-1981), Leopoldo Constanzo (1927-?) e Luiz Carlos Macchi e Silva (1947), e pelo arquiteto Cairo Albuquerque da Silva (1945), incorporado posteriormente ao grupo. Dezenas de edifícios, a maioria deles, públicos, foram construídos no entorno. O Edifício-sede da SMOV foi o terceiro edifício mais antigo implantado na área. Em fotos da época (Figura 1), no meio do areal, se destacava na paisagem, contribuindo decisivamente para estruturação espacial daquela nova área da cidade, outro valor desconhecido daqueles que o ignoram ou por eles desprezado.
Sergio Marques lembra que Moacyr Moojen Marques elaborou o projeto da Secretaria concomitantemente com a conclusão dos projetos para a Refinaria Alberto Pasqualini (1962), em Esteio, trabalho que desenvolvia em parceria com os colegas Carlos Maximiliano Fayet (1930-2007), Cláudio Luiz Araújo (1931-2016) e Miguel Alves Pereira (1932-2014). No caso da SMOV, escreveu Sergio que Moacyr “adotou os princípios conceituais com os quais estava imbuído, como a modulação, racionalidade construtiva e pré-fabricação. Expõe que na antiga sede da secretaria, os salões já não tinham divisórias de alvenaria e sim tabiques de madeira que vivia tendo adaptações com muitos problemas em termos de vigas, pilares, pontos de luz e infraestrutura. Como também não havia clareza na futura composição das secretarias, a concepção geral era de pavimentos, térreo, mais salões livres, dentro do gabarito da legislação, retirando a estrutura de dentro do edifício para não condicionar a planta com exceção de quatro pilares, que por razões estruturais não puderam ser evitados.
O edifício-sede da SMOV tem também valor arquitetônico. O edifício é um bloco prismático com sete pavimentos, construído sob um pedestal que o eleva em relação ao entorno imediato. Sua composição é tripartida, distinguindo-se claramente a base, o corpo (com cinco pavimentos) e o coroamento (ático). Base e Ático distinguem-se dos pavimentos tipo pelo sombreamento proporcionado pelo recuo em relação ao corpo do edifício, gerando uma dramaticidade empregada por Le Corbusier (1887-1965). As gárgulas de concreto aparente reforçam a influência deste arquiteto franco-suíço. Para atender as frequentes alterações no programa de necessidades, e de adaptar seus espaços a elas, o prédio foi inteiramente modulado (módulos de 1,25m x 1,25m) à Aldo van Eyck (1918-1999), implantando-se a estrutura vertical externamente, com poucos apoios internos como destacou o arquiteto Sergio Marques. Isto permite o uso de painéis divisórios de parede, adequando os compartimentos internos às novas exigências. As divisórias foram concebidas pelo arquiteto Bruno Franke, funcionário da Secretaria de Obras e Viação. Luccas enfatiza no projeto a “monumentalização da estrutura”, gerada pelo destaque dos pilares externos, lembrando Ludwig Mies van de Rohe (1883-1969), da última fase. A concepção moderna de planta livre (com a circulação vertical e sanitários ao centro), liberando as áreas periféricas, lembra soluções empregadas pelo mesmo Mies van der Rohe, tipo desenvolvido para prédios de escritórios, na sua fase norte-americana. No tratamento idêntico das quatro fachadas, salientam-se os pilares, as vigas e os peitoris, em concreto aparente. O uso deste material está associado ao brutalismo corbusieriano. A estrutura aparente reforça a raiz neoplasticista herdada através de Mies. As placas pré-moldadas de concreto usadas nos peitoris possuem um tratamento que alude às luminárias empregadas internamente. Este tratamento decorativo externo foi usado anteriormente pelos modernistas uruguaios. Esta breve descrição, no qual se constata um forte hibridismo coerente com os princípios do movimento moderno, permite perceber que a edificação, nos termos aqui colocados, é excepcional no contexto local. Não vê quem não quer.
Se há um inventário na qual a obra não conste, este deveria ser revisado. Aliás, no nosso país os inventários deixam a desejar. Para exemplificar as constantes incoerências, basta questionar o motivo pelo qual, no Rio Grande do Sul, por exemplo, quase nenhuma das sedes das antigas fazendas e charqueadas são consideradas pelo poder público como de interesse cultural?
Na administração de Jair Bolsonaro (1955), ocorrida entre (2019-2022), o ex-ministro da Economia Paulo Guedes (1949) ameaçou leiloar o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública (1936-1945), no Rio de Janeiro, conhecido como Palácio da Cultura, obra que contou para a sua concepção com a consultoria de Le Corbusier (1887-1965), e com a equipe liderada por Lucio Costa (1902-1998), composta por Oscar Niemeyer (1907-2012), Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Jorge Machado Moreira (1904-1992), Carlos Leão (1906-1983) e Ernâni Vasconcellos (1912-1989). Teve que enfrentar a reação da comunidade internacional, recuando no seu objetivo. Agora será necessário também a mobilização de setores envolvidos com a cultura e com a arquitetura e urbanismo, para que Porto Alegre mais uma vez não venha a ser subtraída de um bem importante na construção de um patrimônio ambiental urbano enriquecedor. Assim jamais Porto Alegre terá a oportunidade de chegar perto de Roma, nem quando tiver dois milênios de história.
Quando este artigo for divulgado na próxima sexta-feira, Porto Alegre estará se mobilizando para abraçar o edifício-sede da SMOV. Este ato está previsto para às doze horas e trinta minutos. Diversas entidades confirmaram presença. Vá você também. Exerça a sua cidadania, compareça e contribua para sensibilizar as autoridades e as pessoas alheias ao problema.
BIBLIOGRAFIA:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos Movimentos contemporâneos (Tradução: Denise Bottmann & Federico Carotti). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel (Tradução: Lorenzo Mammi). São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade (Tradução: Pier Luigi Cabra). São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Arquitetura Moderna Brasileira em Porto Alegre sob o mito do “gênio artístico nacional” (Tese orientada pelo professor Rogério de Castro Oliveira). Poto Alegre: Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, maio de 2004.
MARQUES, Sérgio Moacir. SMOV – Secretaria Municipal de Obras e viação.
Xavier, Alberto & MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura Moderna em Porto Alegre. São Paulo: Editora Pini, 1987.
Foto da Capa: Edifício-sede da SMOV. Fonte: Astecpmpa