“Não se nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão de identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude, está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardas etc. “Este trecho está num depoimento de Lélia de Almeida Gonzáles, publicado em 1988.
Lélia foi filosofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Em sua trajetória – encerrada há 25 anos – teoria e prática estiverem organicamente conectadas. A sua produção autoral é de fundamental importância para o pensamento social brasileiro. A obra da autora enfatiza o protagonismo negro, particularmente das mulheres negras, na formação social-cultural do país. Infelizmente, Lélia Gonzáles não é um ícone POP e se estivesse viva provavelmente estaria causando e se posicionando muito agora em 2022 …Mas Lélia vive como ancestral e ter contato com sua obra pode nos fazer pensar sobre a negritude que temos construído enquanto corpos políticos que não tem direito à isenção.
Me segue no fio como se diz no twitter… Eu fico me imaginando em uma conversa com Lélia e fazendo várias perguntas a partir desta sua afirmação, e como boa filósofa ela iria me dar ângulos que talvez minha imaginação não alcance…
Mesmo assim eu tenho esta ousadia de imaginar este diálogo com ela e perguntando: “Prof. Lélia, por que a senhora afirmou que uma pessoa na consciência da sua negritude está na luta contra o racismo? E as outras são mulatas, marrons, pardas… “Na minha conversa imaginária a vejo dando a seguinte resposta: “Patrícia, como alguém mesmo sendo negro, mas sem consciência de sua negritude, pode ser antirracista? Usei a metáfora do embranquecimento, da crença no colorismo para que se possa se sentir em outra identidade, e assim continuar a não pensar, a se isentar e a perpetuar a noção de que ser branco é melhor. Porém, isto não vai isentá-los de sofrer o racismo pois seus corpos são políticos.”
Neste pequeno diálogo, eu teria ficado rascunhando esta resposta e me lembrando da minha própria história de embranquecimento ao nascer no Rio Grande do Sul com uma pele clara, mas traços e genética negra… e um tio… o Walter Carneiro Rosa, militante do movimento negro na década de 70, cocriador do Tição – jornal antirracista- que simplesmente me dizia: “Passou de branco nego é.” O meu corpo sempre foi político e a minha educação foi para que eu pudesse me posicionar sem isenção. E, mesmo assim, eu achei que podia fugir do racismo indo atrás de dinheiro, fama e sucesso… O maior erro de um negro no Brasil. Pois o dinheiro e posição social não te isenta, pois seu corpo reverbera em espaços onde o racismo impera.
Mas mesmo em 2022 abro as redes sociais e vejo ainda: negros e negras procurando esconder seus corpos políticos. Mas afinal o que é um corpo político?
Para Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia da USP e integrante do Numas (Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferenças, há a importância do lado biológico de um corpo, mas ressalta a relevância que o fator social tem. “O corpo vai sendo moldado na vida em sociedade, o nosso modo de andar, de dormir, de falar. Se ele é socialmente e culturalmente moldado, é também politicamente”
Para Fernanda Borges, filósofa, psicoterapeuta corporal e autora do livro “A Filosofia do Jeito – Um modo brasileiro de pensar com o corpo” (Summus, 2006), o ser humano cria instituições culturais que regulam como corpos devem sobreviver, agir e se comportar em sociedade.
“Essas instituições regulam o nascimento, a morte, o casamento e os papéis que cada corpo tem naquela sociedade. Mas nem todos percebem essa regulamentação, muitos acreditam que ela é natural, que homem é assim e mulher é assado, que branco é assim e negro é assado”, afirma a filósofa.
Em seu canal no YouTube “Filosofia em Movimento”, Fernanda questiona: “O que é ser mulher de verdade? Para muita gente, é a naturalização de uma condição machista que a sociedade impôs.”
E para Heloisa, ainda, a compreensão de que o corpo é também um agente político é fundamental para qualquer tipo de mudança. “Corpos são politicamente moldados, mas eles também podem moldar a política”, diz a antropóloga.
Por isto que como corpos negros não temos direito a isenção, pois mesmo que você não queira seu corpo é um marcador de diferenças, de violência, de olhares, de objetificação. Isto explica o áudio do presidente do clube: “Ele estava de moletom”. Ou então, os gritos de uma elite provinciana fazendo sons de macacos.
Aqui no Mississipi em chamas do Sul todo corpo preto é político. E eu te pergunto: que política você está fazendo com ele?