Otto Lara Resende, aos 69 anos, estreava como cronista da Folha de S. Paulo com um título quase igual ao que eu usei acima: Um Bom Dia para Nascer. Era 1º de maio de 1991 e Otto usou em sua primeira crônica a leveza e a coloquialidade que o espaço exigia. Agora eu – voltando a este espaço tão generosamente cedido (e reivindicado) pelo Luiz Fernando Moraes, depois de alguns dias dedicados a um trabalho que me tomou (e ainda me toma) um grande tempo – me aproprio da ideia do Otto para tratar esse 11 de abril como um bom dia para voltar. Para renascer.
Onze de abril é o 101º dia do ano no calendário gregoriano (102º em anos bissextos), quando ainda faltam 264 dias para acabar o ano. É também o Dia Mundial da Doença de Parkinson, o Dia do Infectologista e o Dia da Escola de Samba. A data marca os nascimentos, entre outros, do compositor argentino Alberto Ginastera (1916-1983), do ex-deputado Almino Affonso (1929) e do ator Joel Grey (1932), e das mortes do poeta francês Jacques Prévert (há 46 anos), do pianista Waldir Calmon (há 41 anos) e dos escritores italiano Primo Levi (há 36 anos) e americano Kurt Vonnegut (há 16 anos).
E é a véspera do aniversário da minha filha, Lina, que amanhã completa 11 anos.
Além de renascer, a data se presta também a lembrar, ao exercício da memória. E aí eu me lembro de Memorando, um livro tão simples quanto fascinante.
Escrito pelos jornalistas Geraldo Mayrink e Fernando Moreira Salles, Memorando é um exercício sobre como a lembrança está presente em toda a literatura, de Homero a Proust.
A inspiração mais direta para os autores veio de três obras: I Remember, de Joe Brainard, Je Me Souviens, de Georges Perec, e Moi Aussi, Je Me Souviens, de Eric Fottorino.
Memorando, todo construído em cima das memórias afetivas dos autores, traz alguns trechos antológicos, como os que reproduzo a seguir:
“Eu me lembro que soma do quadrado dos catetos é o quadrado da hipotenusa”.
“Eu me lembro que meus professores diziam que conhecimentos como este seriam de grande utilidade pela vida afora”.
“Eu me lembro que o presidente Figueiredo pediu que a gente se esquecesse dele”.
“Eu me lembro que o suplemento dominical do Jornal do Brasil saía aos sábados”.
“Eu me lembro que as sessões de cinema eram às duas, quatro, seis, oito e dez horas”.
“Eu me lembro de alguns gênios. Um deles se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas, num cabaré de Berlim, dizendo: ‘Sou ator de teatro e cinema, escrevo contos, programas de rádio e televisão, dirijo filmes e peças, sou ventríloquo, ilusionista e mágico. Pena eu ser tantos e vocês tão poucos. Meu nome é Orson Welles'”.
“Eu me lembro que quando li as primeiras frases de Lolita, de Vladimir Nabokov, decidi que não tentaria escrever romances…Era assim: “Lolita, luz de minha vida, fogo do meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. Lo-lita.
Era Lo, apenas Lo, pela manhã, com suas meias curtas e seu metro e meio de altura.
Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola.
Era Dolores quando assinava o nome.
Mas, em meus braços, era sempre Lolita”.
Isso porque ele era russo. E escrevia assim em inglês.
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Eu me lembro também que quando li o conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, decidi que não mais escreveria contos.
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Me lembro que quando vi Quem tem medo de Virginia Woolf, de Edward Albee, prometi não escrever peças para o teatro.
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Me lembro que, quando ouvi Construção de Chico Buarque de Holanda, desisti de fazer letras de música para meus colegas roqueiros…
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Só que mais tarde acabei lendo Ada, do mesmo Nabokov que escreveu Lolita.
Assisti uma peça que se chamava Box do mesmo Albee de Virginia Woolf.
Ouvi uma música chamada Morena de Angola, de Chico Buarque, e… fiquei sem saber…
É que não consegui ler um mau conto do Guimarães Rosa. Mais tarde, quando, incauto esqueci todas essas juras, passei a me assombrar com o velho Mario Quintana que dizia: “Se dizem que escreves bem, desconfia. O crime perfeito não deixa vestígios”.
Foto da Capa: a atriz Sue Lyon foi Lolita no filme de 1962, dirigido por Stanley Kubrick