É intrigante a coragem que as pessoas adquirem quando estão em grupo. De onde vem essa cara de pau de se sentir à vontade para vaiar e proferir xingamentos, destilar ódio e preconceito de forma tão despudorada? Está doendo tanto todo esse reboliço em torno do hediondo episódio com Seu Jorge e seus desdobramentos, que resolvi relembrar um momento inverso, mas que também se explica pelo efeito da proteção do grupo.
Outro dia, fui a uma sessão do Cine Preto, organizada pela Malê Afro-produções, e passei momentos catárticos jamais imaginados por essa pessoinha aqui que já lá se vai no “seu longo andar”, ao estilo Mario Quintana.
Gente, foram várias e intensas emoções. A primeira delas foi ver um cinema lotado. Que imagem! Raramente vou ao cinema – confesso – e a cada vez que vou, sinto um constrangimento ao ver aquela meia dúzia de gatos pingados espalhados pelas salas que já nem são tão grandes assim. Pois dessa vez, o constrangimento deu lugar a uma alegria imensa. Cinema lotado… que coisa linda! E lotado de pessoas pretas! Sabe o que é isso? Emoção dupla.
Quem me conhece – e nem precisa ser profundamente – sabe que nada tenho contra pessoas brancas. Luto por um mundo de igualdade e tolerância. Tolerância e entendimento sobre as diferenças, igualdade de oportunidades, bem entendido, tá? É que para alguém que é sempre minoria dá um afago no coração se ver totalidade. É sobre isso.
Estive em uma das salas do Bourbon Country. Eram cerca de 300 lugares. Não era entrada franca, entenderam? PAGANTES PRETOS LOTARAM UM CINEMA DE 300 lugares em Porto Alegre. Aham… Convite 0800 para estreias de filmes, inaugurações de restaurantes, mostras de arte, projetos, trenzinho da alegria e boca-livre só rola para quem? Quantos negros você vê circulando por essas situações e ambientes?
Pois bem, assistimos ao filme Mulher Rei, pagamos, compramos pipoca e refri e enchemos os olhos com Viola Davis e várias atrizes negras maravilhosas. Boas atuações. Imprecisões históricas? Ah… O roteiro é baseado em fatos verídicos, mas ele é ficção. Não esqueçam disso, amados críticos. Cinema é criação, cinema é ficção. A vida real é outra história. Então tá…
O filme é impactante como todo o filme de ação deve ser. Tem música forte, atuações marcantes, enredo de picos e contrapicos, romance, conflito, cenários e batalhas impressionantes. E o fenômeno de estar em grupo e entre iguais fez com que o público reagisse a cada sutileza, captando e respondendo a todas as provocações do diretor e dos roteiristas. Algo raro de se ver nos dias de hoje. Não lembro de tanta emoção e nem de reação coletiva como a que presenciei.
E eu chorava a cada manifestação. Muito mais pelo espetáculo extra proporcionado pelo público do que pelas sequências que se desenvolviam no telão. Teve bateção de pé, teve grito de apoio, gargalhada, pulo na cadeira de susto, torcida para o lado bom, vaia para os maus, choro aberto, lágrima contida. E palmas, muitas palmas ao final. Tô aqui escrevendo e o braço já se arrepia ao lembrar o fenômeno testemunhado por esses olhos incrédulos.
A essência da arte é a identificação com o público que a consome. E o que se viu naquela sessão de cinema foi uma consagração total da arte. Havia identidade, havia entendimento. Foi uma sessão de catarse coletiva. Como eu queria que um Ridley Scott da vida pudesse presenciar um momento como esse. Como eu queria que críticos de cinema mais radicais pudessem entender o que ali aconteceu. Um desses profissionais manifestou no YouTube sua indignação pelo sotaque britânico do ator que interpretava o brasileiro na trama. Lembrei também as falas terríveis do Javier Barden em Comer, Rezar e Amar, também interpretando um brasileiro. E a pergunta que não pode calar é: e daí? Isso realmente incomoda o público para quem a obra é direcionada? E ainda digo mais, para horror dos puristas: a sessão do Cine Preto era dublada! Hahahahahaha (Morri!)
O fato é que são detalhes de uma análise do ponto de vista de quem não se entrega, de quem se mantém em um nível de distanciamento e, muitas vezes, em uma postura de superioridade. Lugar em que vivi durante muito tempo. Respeito e admiro muito o trabalho dos críticos de cinema e teóricos da comunicação em geral, mas é preciso entender esse comportamento de massa, que iniciativas como o Cine Preto nos propiciam. E não foi apenas com Mulher Rei. As edições anteriores com os filmes Pantera Negra e Medida Provisória comprovam que o fenômeno das ações em grupo gera, na maior parte das vezes, um efeito positivo e seguro.
E se você ficou com vontade de sentir algo similar, antene-se porque vem aí Pantera Negra II com mais uma edição sensacional do Cine Preto. Vai ser com dose dupla: dia 9 de novembro com a pré-estreia do filme Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, com filme legendado. Depois, dia 16, a sessão com o filme dublado no Espaço de Cinema do Bourbon Country em Porto Alegre.
Adivinha se eu não vou me atirar? Bora?