Ao saber da demolição do sobrado onde Caio Fernando Abreu morou fiquei chocada, triste e é impossível não falar. A notícia me pegou de surpresa. Foi nesta casa que ele ficou quando voltou para Porto Alegre. Foi nesta casa que morreu em 1996. O que mais me espanta é que a licença para a demolição tenha a mão da Prefeitura de Porto Alegre, que foi omissa e nada fez pela preservação. O arquiteto responsável nem sabia que ali viveu um dos mais importantes autores da literatura brasileira recente. Fico cá pensando que o local, destruído por um trator, poderia ter sido transformado em um espaço de arte, uma escola, uma galeria. Mas a especulação imobiliária é voraz. Não respeita a história, a memória, o patrimônio cultural de uma comunidade. Primo em terceiro grau de Caio, o artista visual Amaro Abreu afirmou em um vídeo: “Atropelam o passado, se achando donos do futuro”. É lamentável que os donos do poder sejam tão medíocres e tão contaminados pelo dinheiro a ponto de ignorar a cultura e vender o que nos dá identidade.
Ano de 1985 – com Tânia Carvalho na rádio Pampa
“Escritor, jornalista, dramaturgo, andarilho, das fronteiras dos pampas gaúchos para o mundo. Garopaba, Europa, quem sabe o Oriente. A efervescência dos anos 1960, Hendrix, Joplin, Lennon, os hippies, as drogas, as filosofias orientais, o Vietnã, o Tropicalismo, o golpe de 1964 no Brasil, o milagre econômico, os duros tempos de Médici, o exílio, a censura, o alvorecer da década de 1970 – “Os Anos do Silêncio”, como diria Caetano Veloso numa entrevista para o “Pasquim”. O militarismo na América Latina, o medo, a angústia, a consciência ecológica emergindo, antipsiquiatria, a solidão humana – Santiago, Porto Alegre, São Paulo, Europa, Rio – “Uma confiança burra de que tudo ainda vai dar pé”, como ele mesmo diz. Tudo isto – e muito mais – é Caio Fernando Abreu, tão perto de nós hoje e com quem vamos conversar já, com muita saudade” – Tânia Carvalho na abertura do programa que apresentava na rádio Pampa, entre 14h e 16h, que eu produzia. Naquela tarde já distante, mas ainda tão viva na memória, com a presença de Caio, eu estava especialmente emocionada. Na época, a peça de teatro “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”, texto dele, com direção de Luciano Alabarse, estava em cartaz no Clube de Cultura (Ramiro Barcelos, 1853).
Sempre fui fã de Caio. E uma fã muito tímida. Estive com ele três vezes. A primeira em uma aula experimental de ioga no bairro Bom Fim. Fiquei tonta de emoção, não consegui falar e tratei de meditar. As outras duas vezes foram no trabalho, na rádio Pampa, conforme referência acima, e na TVE quando ele foi gravar uma entrevista. Fui leitora da coluna que escrevia no jornal O Estado de São Paulo, que muitas vezes recortei e guardei.
Considerado um autor “maldito” por muito tempo, Caio era amigo da cronista, poeta e dramaturga Hilda Hilst, uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. Perseguido pela ditadura militar teve sua produção literária reconhecida tarde, especialmente depois da sua morte. O romance “Onde Andará Dulce Veiga” ganhou adaptação para o cinema e os contos de “Morangos Mofados”, um dos seus livros de maior sucesso, foram levados várias vezes para os palcos teatrais. Sem medo de escrever sobre temas considerados tabu, quando descobriu que estava com HIV usou a coluna do jornal para falar sobre a doença, com o título “Carta Para Além dos Muros”. Sem medo de dizer o que pensava, transformou-se em símbolo de coragem e dignidade. Coragem e dignidade que faltaram ao governo que não teve a ousadia necessária para manter a casa. Tenho consciência que as decisões no campo da preservação não são tão simples e nem de última hora, mas é inegável que faltou sensibilidade e conhecimento aos administradores do município e do patrimônio.