Em algum momento da década passada, a editora Record decidiu que um ótimo curso de ação para sua linha editorial seria abraçar pessoas que tinham uma visão… paralela, digamos, do Brasil, de seus problemas e de sua história. O que levou a casa a não apenas reeditar como se fossem grandes coisas livros de Olavo de Carvalho que eram compilações de crônicas velhas em duas décadas como funcionar como caixa de ressonância para as bizarrices de uma gente que nadava na disfunção cognitiva como se em uma piscina plástica.
Não vou listar os nomes, faz pouco tempo, todo mundo lembra e, a essa altura, muito daquele entolho intelectual em nome do qual tantas árvores morreram em vão deve estar em algum armazém ou sendo vendido a quilo para reciclagem. Digamos, de modo generoso, que não foi um dos momentos mais felizes do catálogo da editora, e isso que falamos de uma casa em que o seu fundador confessadamente fraudava direitos autorais de tradução nos anos 1970 e 1980, pagando Nelson Rodrigues para emprestar seu nome e sua fama de escandaloso como o “tradutor oficial” do também escandaloso (e best-seller de terceira categoria) Harold Robbins. Sendo que Nelson não falava nem “goodbye” em inglês, história contada por Ruy Castro em O Anjo Pornográfico e confirmada pelo proprietário da Record, filho do fundador, numa entrevista à Folha uns anos atrás.
Sei que por este começo pode parecer que sim, mas esta coluna não é um ataque à editora, apenas o reconhecimento de que uma das casas publicadoras mais tradicionais do Brasil também tem uma trajetória cheia de episódios folclóricos que cruzam o limite do bom senso, e que acabamos de vê-la passar por uma nova fase que será bem estranha de revisitar em 50 anos. Mas, apesar do barulhento e rumoroso papel de caixa de ressonância do reacionarismo nacional que a empresa decidiu assumir durante um tempo (a fase aguda inclusive já acabou. O comando editorial da casa já mudou de mãos há alguns anos e o novo responsável vem dando uma podada no joio mais explícito do catálogo tem algum tempo), estão lá no catálogo da editora coisas que, felizmente, redimem com sobras quaisquer percalços.
MARCO CONTEMPORÂNEO
Uma delas é o romance monumental, em mais de um sentido, Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, publicado há 16 anos e que já pode ser alinhado perfeitamente como um clássico contemporâneo da narrativa romanesca no país. E a obra está, agora, pela mesma editora, ganhando uma reedição turbinada, com ilustrações da artista visual Rosana Paulino, apresentação de Cidinha da Silva e a inclusão de um conto inédito em que a autora desbrava o gênero do afrofuturismo.
É difícil minimizar o impacto que o romance tem como obra no arquivo da literatura brasileira (se você aí vier me dizer agora “mas como assim, eu nunca ouvi falar desse livro”, vou responder que o problema é seu, não meu, e é mesmo) Para começo de conversa, é um livro que, lançado no primeira década dos anos 2000, quando se estabelecia uma literatura nacional muito voltada para a subjetividade dos protagonistas em enredos em que os grandes acontecimentos eram mais internos do que externos, navega na contracorrente casando o registro íntimo (a história é narrada em primeira pessoa) com um fôlego épico e ambição total a bem dizer ausente da literatura mainstream nacional desde os anos 1980.
Outro elemento interessante é que é uma narrativa que desbrava um território então (e a bem dizer até hoje) pouco explorado na literatura nacional, as muitas e complexas ligações produzidas pelo passado comum entre Brasil e o continente africano, e o impacto nessas relações de um dos mais fortes e sombrios vínculos entre eles, a chaga da escravidão. O livro foi lançado também em um momento em que começava a ganhar ressonância vertentes e temas hoje bastante fortes no pensamento acadêmico de humanidades, como a perspectiva descolonial (não consigo usar esse feio “decolonial”, me desculpem. Boaventura de Souza Santos já usava “DEScolonial” em seu seminal Epistemologias do Sul, de 2009), a quarta onda do feminismo e as vozes da diáspora africana. E Ana Maria Gonçalves cristaliza na narrativa, sem alarde, muito do que se viria a discutir sobre esses tópicos. Sei que muita gente andou falando do Torto Arado, recentemente, mas 15 anos antes Um Defeito de Cor já havia se constituído como uma das mais importantes ficções já publicadas sobre a trajetória da população negra no Brasil.
A TRAMA
Com quase mil páginas, Um Defeito de Cor é a história de Kehinde, uma mulher negra que, na velhice, já afetada por doença e cegueira, narra os episódios de sua longa trajetória enquanto viaja para o Brasil para tentar encontrar um filho de quem foi separada quando ele ainda estava na infância. Kehinde nasce e cresce no Savalu, no reino do Daomé, de onde partiram muitos dos escravizados trazidos pelo tráfico humano ao Brasil. Após ter sua infância estilhaçada pela violência praticada contra sua família por homens a serviço do rei, que estupram sua mãe e matam seu irmão logo nas primeiras cenas, ela e uma irmã são levadas pela avó para Uidá, no litoral do país, onde as três são capturadas e embarcadas em um navio com direção ao Brasil.Só Kehinde sobrevive à viagem, e se torna escrava de cozinha e mais tarde de ganho, vendendo doces nas ruas de Itaparica na Bahia – é assim, além de com um golpe de sorte digno das artimanhas romanescas antigas, que consegue amealhar dinheiro para comprar sua liberdade. A primeira parte de sua vida, passada no Brasil, é cheia de violências gratuitas perpetradas pela maldade dos senhores. Abusada e violentada pelos senhores, tem um filho que permanece escravizado e morre cedo num acidente.
Quando finalmente consegue comprar sua liberdade, usa o que aprendeu na cozinha de uma família inglesa para quem foi “emprestada” para montar um negócio de venda de doces. Mais tarde, também envereda pelo comércio de charutos (a reconstituição vívida dos negócios e dos ofícios do Brasil colonial é uma das grandes forças do livro, a propósito). Kehinde amasia-se com Alberto, um português abusivo (hoje a palavra da moda seria “tóxico”) que a trata com carinho no privado e tem vergonha dela publicamente. Ambos têm um filho do qual ela se vê desgarrada quando o pai some com ele após Kehinde voltar de uma viagem, instaurando a obsessão que move a personagem pelo resto de sua vida e que acaba por ser, em última análise, a razão de ser da história que Kehinde está recapitulando na forma do romance que lemos.
COMPLEXIDADE
A longa trajetória da personagem, complexa e multifacetada, ilustra a desumanização provocada pelo processo de escravidão e o quanto vítimas de um sistema ancorado na violência também precisam transigir com seus próprios valores para sobreviver. Já na meia-idade e com dinheiro suficiente para isso, Kehinde decide voltar para a África. No navio, conhece o futuro marido, John, um mestiço alforriado filho de inglês que enveredou pelo comércio. John e Kehinde se casam, têm dois filhos dos quais ela acaba por se desgarrar e, juntos, montam um próspero comércio que inclui a construção de casas ao longo da chamada “Costa dos Escravos” (que inclui os territórios de Benim, Togo e Nigéria ocidental). Outro dos empreendimentos com os quais Kehinde e seu marido conseguem fortuna é – e aqui a própria personagem reconhece a contradição – a venda de armas e pólvora. Armas e pólvora que, ela sabe, irão acabar inevitavelmente na mão de caçadores de escravos do Benim e da Nigéria, como aqueles que capturaram a personagem na infância. Kehinde também não é uma heroína composta de uma só matéria, mas é contraditória, afetada por preconceitos inculcados nela por sua trajetória. Para além do fio extenso de sua vida, há na narrativa também uma poderosa construção de personagens e ambientes, de registro vívido de uma existência silenciada na ficção nacional desde o século XIX: a dos negros comuns e de seus ofícios, seus tipos humanos, seus cultos, sua cultura. Política, tensões sociais, momentos econômicos, personagens reais, do Tiradentes a Joaquim Manuel de Macedo, também são costurados neste livro que se assemelha a uma ambiciosa tapeçaria em que, mesmo que determinadas seções não sejam executadas com a mesma maestria de outras (há um pendor para o romanesco melodramático em certas passagens que pode não ser para todo mundo) compensa de modo magistral com a riqueza de seu desenho conjunto, uma ambiciosa trajetória de vida que se confunde com a história da escravidão dos africanos na América Latina em geral e no Brasil em particular.
Que venham muitos outros anos de relevância para essa obra singular.