Um completo desconhecido é uma biografia cinematográfica sobre Bob Dylan, dirigida por James Mangold, com Timothée Chalamet no papel principal e um grande elenco vivendo personagens coadjuvantes reais cujas vidas de fato cruzaram o caminho de Dylan ao longo de sua juventude: Joan Baez (Monica Barbaro), Pete Seeger e sua esposa Toshi (respectivamente, Edward Norton e Eriko Hatsune), Woody Guthrie (Scoot McNairy), Albert Grossmann (Dan Fogler), Bob Neuwirth (Will Harrison), Johnny Cash (Boyd Holbrook). Além, é claro, de Elle Fanning interpretando Sylvie Russo, uma namorada fictícia de Bob que mescla características e episódios de duas de suas relações românticas no período: Suze Rotolo, a moça que aparece ao lado do cantor na icônica capa de The Freewheeling Bob Dylan, de 1963, e Sara Lownds, que Dylan conheceu em 1965 e com quem se casaria e formaria família.
É um filme com uma reconstituição de época bem cuidada, com um elenco afinado e com duas teses centrais a provar. A primeira, a da importância para a história da música pop do momento em que Dylan rompe com os cânones rígidos do renascimento folk que se verificava nos anos 1960. Para isso, outros dois elementos são recorrentes ao longo do filme: o Festival de Newport, um dos principais eventos dedicados a dar visibilidade a artistas jovens e veteranos ligados ao gênero e onde Dylan é visto tocando em mais de uma cena; e o idealista Pete Seeger, um dos seus principais organizadores do festival e figura de grande influência na própria carreira de Dylan.
Em volta desse tripé que sustenta a narrativa em termos formais, espalha-se de modo mais difuso a segunda tese que está já expressa na ambiguidade do título: Dylan é mostrado em seu início de carreira em Nova York, quando, diante de uma cena vibrante e já estabelecida, ainda pode ser considerado um “completo desconhecido”. Ao mesmo tempo, é um reconhecimento de que, tendo fabricado lendas e confundido informações sobre sua vida ao longo de décadas, Dylan é um personagem impossível de conhecer até hoje. Meu grande problema é que, em busca da defesa dessas duas teses, Um completo desconhecido embarca numa mitologia anacrônica ao período que está retratando, apresenta uma obra que não honra a radicalidade de seu biografado e, por mais que tente tornar o retrato complexo, na verdade cede a uma imagem caricata de Dylan como uma esfinge atormentada e que passa metade do tempo em tela com cara de quem está sofrendo de constipação há uma semana.
Sendo mais claro: é certo que uma biografia no cinema costuma alterar situações, suprimir personagens e simplificar padrões, eventos e processos para caber na sua narrativa mais enxuta, e ou se aceita isso ou não. Se a história for, ainda assim, conduzida com habilidade para que o roteiro condense em cenas simbólicas questões chaves da obra do biografado, tem-se um bom filme. E, por essa definição, Um completo desconhecido até cumpre parte do que se espera. A questão é que, para comprovar as teses que guiam seu roteiro, o filme se ocupa em apresentar um Bob Dylan incompleto. Para um filme que retrata o seu biografado como uma “metamorfose ambulante”, impossível de ser plenamente conhecido pela maioria dos que o cercam, o que se vê na tela é um personagem que mais parece o Bob Dylan de 10 ou 15 anos depois – como se o filme defendesse que, no fundo, Bob já era o que é hoje, completo e sem retoques. É uma visão pobre e pouco imaginativa, e que provoca se torna contraditória ao próprio espírito mutante do personagem ao longo das décadas.
O início
Um completo desconhecido acompanha Dylan chegando a Nova York de carona – portanto, se a cronologia do mundo real fosse levada em conta, em janeiro de 1961. Um de seus primeiros compromissos na cidade é visitar um de seus heróis, Woody Guthrie, na época já internado há anos no Greystone Park Psychiatric Hospital, em Nova Jersey, padecendo de uma doença degenerativa incurável, o mal de Huntington. Isso está retratado no filme, e é o ponto de partida para uma sucessão de coincidências e conveniências (não correspondentes aos fatos documentados) que impulsionam a carreira de Bob para a frente com a rapidez de um trem expresso.
Na visita ao hospital, Bob conhece também Pete Seeger. Seeger dá uma carona para Bob e o aloja em sua casa, a mítica cabana de troncos que o cantor e sua mulher construíram com as próprias mãos na margem do Rio Hudson, numa cidade próxima a Nova York apropriadamente chamada de Beacon (que pode ser traduzido como “farol”, “lanterna” ou “poste de alerta”). Apadrinhado pelo generoso Seeger, Bob é levado a suas primeiras apresentações (não me recordo se o filme deixa claro, mas essa estreia nova-iorquina se deu em um clube fundamental da cena folk da cidade chamado Gerde’s Folk City, em abril de 1961). Nessa mesma noite, ele conhece Joan Baez, com quem mais tarde começará um caso. Também estão na mesma plateia, nessa mesma apresentação, Robert Shelton, crítico jornalista que fará uma das primeiras grandes reportagens com Dylan naquele mesmo ano, e Albert Grossman, que imediatamente se intitula empresário de Bob e, logo na cena seguinte, o leva para uma reunião com a então gigante Colúmbia.
Como eu disse, simplificações são do jogo. E nessa sequência, o número delas é incontável. São apagados do mapa, por exemplo, não só nesse trecho, mas no filme todo: a família de Guthrie, a quem Bob procurou em paralelo ao próprio cantor; o infeliz primeiro empresário de Bob, Roy Silver, das mãos de quem Grossmann praticamente arrancou o contrato do cantor, no ano seguinte, 1962; Ramblin’ Jack Elliott, discípulo/imitador de Woody Guthrie em quem Bob grudou em algumas das suas primeiras semanas em Nova York; ou amigos que foram até mais fundamentais nos primeiros meses de Dylan em Nova York do que Seeger, como o também músico iniciante Mark Spoelstra, o comediante e ativista político Wavy Gravy e o grupo Clancy Brothers, conjunto folclórico irlandês que vivia na cidade e cujos integrantes foram apoiadores incansáveis da causa de Bob para que ele fosse convidado ao palco do Gerde’s. Eu até fiquei tentado a dizer que outro nome importante do início da carreira de Dylan, Dave van Ronk (inspiração para o Llewellyn Davis dos Irmãos Coen), também havia sido limado da história, mas o IMDb me garante que havia um ator interpretando o personagem (deve ser uma ponta tão pequena que eu nem me lembrava dele no filme).
Narrativa e facetas
Em termos narrativos, essa simplificação faz sentido porque é preciso que, desde o início, os caminhos de Bob e de Seeger se cruzem, se aproximem e depois se afastem espetacularmente no fatídico festival de Newport em julho de 1965, no qual Dylan plugou os instrumentos de sua banda (formada pelo multi-instrumentista Al Kooper e pela Paul Butterfield Blues Band) e foi recebido com perplexidade e revolta por uma plateia acostumada aos rígidos cânones tradicionalistas do então ascendente movimento de renascimento do folk: autenticidade e rejeição ao comercialismo (associado diretamente a instrumentos eletrificados e ao nascente rock’n’roll).
O que me deixa insatisfeito é que o filme, com sua linearidade careta e até conservadora, opta por deixar de fora não apenas figuras importantes da biografia de Dylan, mas facetas de sua própria personalidade. Sendo uma biografia composta no momento em que seu biografado já é uma lenda, ela cede ao cacoete de muitas obras do gênero e procura, antes de qualquer coisa, garimpar no passado a confirmação do presente. O Dylan sorumbático e eternamente “cool” de Timothée Chalamet não deixa espaço na obra para facetas menos gloriosas, mas igualmente documentadas do artista naquele período.
Dylan, por exemplo, sabia rir. Agora que o cara ganhou literalmente o Nobel de Literatura e que suas músicas mais conhecidas são épicos surreais, poesias musicais sofisticadas, narrativas trágicas em forma de canções e veementes brados de protesto, fica fácil esquecer que no seu começo Dylan escreveu também sátiras e comédias. Enquanto não só buscava sua voz, mas procurava se encaixar na cena artística de Nova York no período, Dylan compôs várias piadas em forma de canção. Quando começou a cantar em outro clube importante do período, também retratado no filme, o Gaslight, Bob apresentou algumas canções especialmente cômicas, como Talking Bear Mountain Picnic Massacre, inspirada em uma notícia de jornal sobre um passeio de barco que se torna um caos porque são vendidos mais ingressos do que a embarcação comporta, dando início a um tumulto generalizado com empurra-empurra e gente pisoteada.
Esse interesse de Dylan por canções cômicas também pode ser encontrado em seu segundo LP, e sua primeira obra realmente autoral, o já mencionado The Freewheelin’ Bob Dylan. Para começo de conversa, o disco, além de trazer clássicos que são a base do repertório de Dylan até hoje, como Blowind in the wind, Masters of war, A hard rain ‘s a-gonna fall, também trazia composições cômicas como I shall free, com direito a uma piada na qual o presidente Kennedy liga para Bob pedindo sugestões de como o país poderia crescer. Bob responde com uma lista das musas mais gostosas do cinema do período: Brigitte Bardot, Anita Ekberg, Sophia Loren, garantindo que assim “o país vai crescer” (inclua seu duplo sentido aqui).
Outra música que chegou a ser gravada neste mesmo álbum – e retirada de última hora – foi a feroz sátira Talkin’ John Birch Paranoid Blues, canção na qual Bob narra em primeira pessoa as inquietações de um americano obtuso que se filia à associação John Birch Society (uma espécie de MBL ancestral americano, obcecada com a “caça aos comunistas” que ameaçam a nação). Burro, paranoico e muito confuso, o personagem da canção, após obter a carteirinha da entidade, começa a procurar comunistas “debaixo da cama”, “atrás da pia, debaixo do piso”, “no porta-luvas do carro”. O sujeito conclui que não apenas Eisenhower, Lincoln, Jefferson e Roosevelt eram espiões russos, mas que, de modo muito suspeito, há também “faixas vermelhas na bandeira americana”, colocando sob suspeita a mítica Betsy Ross, a quem se atribui a confecção da primeira bandeira dos Estados Unidos. A canção termina com o sujeito indo para casa para investigar a última coisa que sobrou, ele mesmo, e torcendo para não achar nada. Como a música foi sendo refinada por Bob ao longo de várias apresentações, há mais de uma versão gravada em shows e nos exemplares do disco antes da reordenação promovida pela gravadora com medo de um processo pela John Birch. Em uma das estrofes expurgadas em versões posteriores, Bob pega pesado: “Hoje todos concordamos com a visão de Hitler / Embora ele tenha matado seis milhões de judeus. / Não importa tanto que ele fosse fascista, / Pelo menos você não pode dizer que ele era comunista!”
Reinvenção
Dylan também era um exímio contador de lorotas. Para abrir seu espaço numa cena que valorizava a “autenticidade” e cultuava heróis do povo, viajantes meio peregrinos e meio vagabundos como o próprio Guthrie e, em menor escala, o próprio Seeger, Dylan chegou fabricando uma biografia exuberante que tentava estabelecer o tipo de crédito que ele talvez não conseguisse como um jovem judeu normal de classe média nascido e crescido em um meio-Oeste economicamente próspero. Nesse período, Dylan disse, não só em entrevistas, mas para todo mundo que o conhecia, que era órfão; que havia fugido de casa muitas vezes e não mantinha mais contato algum com a família; que a partir dos 13 anos viajou pelo país com um parque itinerante onde aprendeu a tocar gaita e violão com caubóis cantores; que havia crescido no Novo México (onde ainda nunca estivera) e que, em consequência disso, era em parte descendente de indígenas. Algumas dessas histórias parecem querer vender uma imagem mais afinada com o tom da “autenticidade popular” exigida dos artistas folk. Outras parecem pura zoeira.
No filme, Dylan menciona algumas dessas narrativas – nas duas vezes em que isso acontece, ele está tentando impressionar as mulheres com quem estava saindo. Se a fictícia Sylvie parece se encantar com a história, a inteligente e algo cínica Joan Baez saca na hora que Dylan está mentindo. E, nos dois casos, Chalamet conta as histórias com um ar blasé afetado que torna o retrato esboçado no filme incompleto. Até hoje, alguns pontos de sua biografia são de difícil elucidação, e hoje Bob mantém o mistério na base do silêncio, o dele próprio e o imposto na marra aos seus amigos e familiares mais próximos. Naquela época, contudo, de acordo com depoimentos de vários conhecidos de Bob, o modo mais comum de Dylan desviar a atenção das perguntas sobre suas histórias mal contadas era com piadas e humor. Ele só vai se tornar o bardo sombrio e recluso após o acidente de moto que usou como desculpa para se retirar da cena pública na segunda metade dos anos 1960, cansado que estava da fama e das expectativas gerais sobre seu trabalho (Gostei, aliás, de o filme terminar com a imagem de Dylan indo embora na moto, como que piscando para o fã do cantor que sabe o que virá depois).
Antes disso, contudo, Bob era também descrito como uma figura entre o cômico voluntário e o involuntário. Joan Baez anota em sua autobiografia, And a voice to sing with, de 1987, que na primeira vez que viu Dylan ele estava sujo e usava um casaco de couro comicamente dois números menores do que seu tamanho. Outros relatos sobre sua primeira apresentação no Gerde’s, em 1961, dizem que ele usava roupas emprestadas com o efeito contrário: muito grandes para sua figura franzina, o que o fazia parecer uma espécie de gnomo (outra coisa diversa do filme: ao contrário do esguio e alto Chalamet, Dylan sempre foi de estatura do mediano para baixo). A preocupação estetizante do filme prefere apagar esses aspectos também verdadeiros da vida e da personalidade de Dylan em nome de uma construção mítica que, no fim das contas, termina no mesmo ponto que muitas das narrativas sobre o cantor/compositor: o artista rebelde acima de tudo.
O roteiro do filme é baseado no livro Dylan goes electric, de Elijah Wald, lançado em 2015. Infelizmente, ainda não publicada no Brasil, é uma obra jornalística sólida que lida com nuances e sutilezas, e o próprio Wald afirma na introdução da obra que a narrativa do que ocorreu no Festival Newport em 1965 é sempre apresentada por um ponto de vista já calcificado: o de Dylan como o artista visionário que enfrenta um público conservador ainda ignorante da verdadeira revolução estética que está se desenrolando em sua frente. Mas Wald lembra que, do ponto de vista de muitos dos adeptos do revival do Folk no período, a história poderia ser outra:
“Na maioria das narrativas, Dylan representa a juventude e o futuro, e as pessoas que vaiaram estavam presas ao passado moribundo. Mas há outra versão, na qual o público representa a juventude e a esperança, e Dylan estava se fechando atrás de uma parede de ruído elétrico, trancando-se em uma cidadela de riqueza e poder, abandonando o idealismo e a esperança e se vendendo para a máquina de criação de astros. Nesta versão, os festivais de Newport eram encontros idealistas e comunitários, alimentando a crescente contracultura, ensaios para Woodstock e o Verão do Amor, e os peregrinos que vaiaram Bob não estavam rejeitando esse futuro; eles estavam tentando protegê-lo. Por mais patético que seja dividir a história em segmentos decimais precisos, a década de 1960 foi um período de reviravolta dramática, e 1965 marcou uma divisão significativa”, escreve Wald (tradução minha, o livro não tem edição em português). Um completo desconhecido prefere optar pela mais comum dessas narrativas, a canonizada hoje como o triunfo de Dylan.
Outra questão é que o filme não parece disposto, em seu academicismo linear, a honrar sua própria premissa, a já mencionada (e basicamente correta) ideia de que Dylan era uma pessoa diferente a cada interação, dependendo do que cada pessoa à sua volta via nele. Uma premissa que simplesmente não cabe na forma clássica como a narrativa a usa. O melhor talvez fosse ter um filme ao estilo Rashomon, no qual cada pessoa apresentasse um retrato diferente de um Dylan que conheceu, mas aí as comparações seriam inevitáveis com um filme que já existe e é melhor: Não estou lá, de 2007, de Todd Haynes, com Richard Gere, Heath Ledger, Cate Blanchett, Christian Bale entre outros, cada um vivendo uma fase diferente das várias transformações pelas quais Dylan passou na carreira. Se eu tivesse que recomendar um deles, seria este. Mas o bom em Um completo desconhecido é que boa parte do tempo de tela é preenchida por gente tocando música. E as músicas, essas sim, são muito boas.
P.S.: Se vocês acharam por algum momento que eu ia falar do fiasco que foram as justificativas furadas e o show de truculência e autoritarismo da prefeitura de Porto Alegre na gestão (e repressão) do Carnaval da Cidade Baixa – bairro no qual o Cara Melo não tem uma base eleitoral, mas no qual empreiteiras amigas têm alguns projetos de interesse –, lamento, mas não. Eu já escrevi muito sobre o Cara Melo antes da eleição, tenho certeza de que quem acompanha aqui leu, e mesmo com todos os indícios de para onde se inclinaria uma segunda administração desse personagem, ele foi eleito e um segundo mandato foi a ele concedido. De minha parte, agora é tentar sobreviver mais alguns anos nesse mar de neoliberalismo e incompetência que vocês aí elegeram, então eu falo do que eu quiser…
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Foto da Capa: Divulgação