“Nunca estamos preparados para um acidente. No entanto, uma coisa é certa: mais cedo ou mais tarde, ele ocorrerá”.
Colin Parkes, Intervenção Psicológica em Emergências
O governador Eduardo Leite recoloca nossa relação com o fim, a finitude, a morte, a pulsão já descritas por Freud quando afirmou: “Esqueçam tudo o que vocês já viram de tragédia. Será o maior desastre do Rio Grande do Sul”. Foi seu esforço de transformar o acidente climático em tragédia para chamar a atenção das multidões e, com isso, levar a catástrofe climática a sério. Com a sua palavra, todos ficamos angustiados, virou a dramatização midiática que faz parte de uma característica da comunicação contemporâneo, a da sincronização das emoções. Foi o que aconteceu também quando todos ficamos sensibilizados com a dor do cavalo Caramelo no telhado de uma casa. Até a Rosangela Lula da Silva, a Janja, envolveu-se no caso. Ficamos aliviados quando foi salvo o cavalo real e símbolo gaúcho. Acompanha a narrativa da tragédia o temor pela segurança pública, estéreo-ansiedade em forma de imagem e som e que aumenta a angústia coletiva. A outra face da tragédia climática é a tragédia audiovisual. Todos iremos sonhar com ela.
Nesta tragédia vivenciamos emoções, mas estamos perdendo a consciência de seu significado. Continuamos cegos ao fato de que a enchente é efeito das transformações climáticas agudizadas pela ausência de políticas públicas. Nos termos de Silvia Marcuzzo, (Sler, 3.4.2024), “mesmo com tudo que passamos o ano passado, parece que ninguém aprendeu com as desgraças”. Esta cegueira inicia quando o governo é incapaz de adotar planejamento territorial considerando as bacias hidrográficas, pela ausência de participação dos corpos técnicos responsáveis pela fiscalização ambiental ou dos conselhos do meio ambiente nos comitês de gerenciamento, pelo silêncio crítico em relação aos parlamentares que ajudaram a desmontar o Código Estadual de Meio Ambiente, políticos que insistem em aprovar legislação que agravam impactos de enchentes. Para Paul Virilio, é como se estivéssemos funcionando fora da consciência, “o que equivaleria não só a inconsciência, se não também a loucura: a de cegarmos voluntariamente a consequências fatais de nossas ações e invenções”. As chuvas foram agudizadas pelo modo como o governo estadual desmontou a legislação ambiental e a forma displicente do governo municipal com os sistemas de proteção das enchentes da cidade. A máquina de guerra da capital gaúcha contra as enchentes foi desmontada por quem devia cuidar delas, provando que não é preciso explosivos para fazer a guerra. Se o sentimento está em alta, porque não nos comovemos com tamanha imperícia, com tamanha falta de cuidado com a população?
Prevenção é investimento. Custa dinheiro. Mas depende da consciência do cuidado público, que deveria ser obrigação tanto da iniciativa pública como privada. Se as empresas automotivas europeias são capazes, segundo Virilio, de patrocinar 400 testes de impacto (crash test) para melhorar a segurança de seus veículos, por que as nacionais e autoridades são incapazes de investir em ações de e para a prevenção de catástrofes como em Brumadinho e Porto Alegre? No Japão, Aichi é uma prefeitura localizada na região de Chubu, na ilha de Honshu. No site oficial da província encontra-se tudo o que o cidadão precisa saber e fazer sobre prevenção aos desastres representados pelos frequentes terremotos. Procurei no site da Prefeitura de Porto Alegre algo similar e o que encontrei? Informações para onde deve o cidadão ligar em caso de desastre e informações técnicas dos órgãos da Defesa Civil. Enquanto o site japonês se preocupa com educação para o autocuidado em catástrofes, que vai desde a análise de cada residência, o incentivo a participação em atividades preventivas que começam na idade escolar, o armazenamento de água e demais itens necessários de sobrevivência, o que fazer antes, durante e depois um terremoto, o site da prefeitura reúne links de legislação de defesa civil.
O sentimento de viver uma tragédia é a angústia. As enchentes irão marcar a história gaúcha. As consequências estruturais, físicas, econômicas estão sendo bem levantadas. Falta-nos as subjetivas. Paul Virilio, em Un paisaje de acontecimientos (Paidós, 1997), a obra que antecipou o drama das Twin Towers, o da destruição por outros meios, assinala que o efeito psíquico das catástrofes é o de nos tornar um país… à beira de um ataque de nervos! Basta nuvens no céu para iniciar nossos temores domésticos, que tem de ver como está o céu de Porto Alegre ou como está o nível do Guaíba. Aliviados de passar pelas intempéries de setembro, passado as chuvas, tínhamos a impressão de que viveríamos felizes por algum tempo: “Esta festa, esta felicidade invertida, não é característica de nossa época?” pergunta Virilio. Desejamos mais a ausência de chuvas do que a presença do tempo bom, desejamos a falta. Desejamos não sofrer, não morrer por causas da natureza, voltamos ao lar para não nos expormos ao risco, ao teletrabalho, nos distanciamos do mundo: ir para Gramado, mas… e se chover? As catástrofes climáticas produzem estresse coletivo, são esse traumatismo das consciências que imagina o fim dos tempos: “Deixe-me tranquilo por alguns dias”, resume Virilio sobre nosso sentimento frente a catástrofe.
A enxurrada não é apenas um acontecimento catastrófico, mas é a causa de ansiedade e angústia individual para aqueles que os vivenciam e coletiva para aqueles que a testemunham. Fim da tranquilidade, fim da paz. Virilio cita o exemplo da resposta dada por um velho camponês da Île-de France que, quando perguntado sobre o que considerava a maior calamidade moderna, respondeu “As informações. A guerra de 1914 iniciou para mim da noite para o dia, não a vi chegar. Na véspera estávamos tranquilos, ninguém pensava verdadeiramente na guerra e sem dúvida estava a mais de cem quilômetros de Paris. Mas com o rádio e logo com a televisão, tínhamos a impressão de estamos sempre a véspera de uma guerra ou de uma catástrofe. Assim não se pode viver”. É o paradoxo das transmissões em tempo real, elas são fundamentais para o acesso à informação, mas estão na origem da sensação de angústia coletiva que a catástrofe climática gaúcha gera. É a ambiguidade da informação: precisamos dela para nos preparar para o pior, mas a transmissão via satélite em tempo real de spots, flashes, a tragédia diante de seus pés, tudo isso se transforma numa espécie de tortura eletrônica. A organização das redes sociais criou os youtuber de ocasião que complicam a vida dos voluntários, cidadãos que em pleno perigo ainda acham força e tempo para registrar, com seus celulares a tragédia. Para quê? Para terem também suas “curtidas”. Por favor! Virilio chama isso de “democracia catódica”, condição que, se os meios de comunicação nos informam, também geram angústia coletiva. Mas como evitar que um dia eletrônico se transforme em um dia sob a tragédia?
Intervindo. Preparando-nos psicossociologicamente. A cidade cresce e com ela mais pessoas irão precisar de atenção em uma catástrofe. Nos preparamos para os pequenos acidentes, acidentes domésticos ou de trânsito, mas nunca para os grandes acidentes. Fazemos seguro, mas como cuidar da saúde mental coletiva? Tão importante quanto controlar os sintomas do estresse pós-traumático, administrar a depressão e luto das perdas familiares e de propriedades é pensar uma nova forma mais segura de construir uma cidade para se viver. A vida fica de “pernas para o ar”, pois as pessoas são incapazes de controlar o efeito da tragédia em suas vidas e já se fala nos efeitos que estão sofrendo as equipes de atendimento. Mas a prevenção começa na arquitetura das cidades, com suas medidas de antecipação de segurança; ela vai além na preocupação com nossas encostas, com o reforço de nossos muros. E vai além no treinamento de equipes e cidadãos psicologicamente para o pior. Daqui para a frente, o urbanismo terá de responder por nossa segurança, e os novos lançamentos não poderão abandonar itens por busca de menor preço e nossa políticas públicas deverão ser sensíveis a subjetividade cidadã.
A enchente produziu danos tangíveis, mas não podemos esquecer os danos intangíveis. A perda da segurança que aflige os moradores do centro da capital sem luz, a perda da dignidade com os problemas que estão sendo vivenciados nos abrigos, a desorganização da vida cotidiana na comunidade que organizava o comportamento tudo isto entra no horizonte da política pública. Por esta razão, a remoção para abrigos somente é um perigo, pois afeta o sentido de pertencer a uma comunidade. A proposta de novos abrigos provisórios deve ser avaliada com atenção para que não se tornem permanentes. Quando Paul Virilio propõe uma ciência dos desastres, trata-se de criar um modus operandi de lidar com catástrofes. Qualquer solução para o drama que vivem os cidadãos atingidos pela tragédia não pode substituir a justiça social, dignidade humana e segurança. Não é possível objetivar uma reconstrução da vida que não seja baseada no alívio do sofrimento imediato, mas também na construção de estratégias pré e pós-desastres. Esta última deve conter uma visão de futuro interdisciplinar, pois a precaução e a reconstrução devem incluir componentes antropológicos, sociológicos, econômicos e sociais para dar resposta aos desastres.
*Jorge Barcellos é historiador, Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores).
Foto da Capa: Rafa Nerddermeyer/Agência Brasil
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